Helena

Existem inúmeras e inomináveis formas de violência. A sociedade tende a conceituar algumas dessas formas para entendê-las, explicá-las, aceitá-las ou justificá-las. Em Medeia, abordamos o processo de construção de imagens relacionadas ao terrorismo, os processos sociais, culturais, midiáticos e políticos que acabam por edificá-lo enquanto conceito de violência. Em Helena, é a experiência da guerra e suas descrições sociais que serão abordadas; como a imagem da guerra é construída, disseminada, consumida, glamourizada, gameficada e reelaborada de acordo com os interesses dos diversos setores e classes sociais? A ideia de guerra nos surge com um conceito catalisador para várias formas de violência administrada, cada vez mais presentes na vida urbana, e que necessitam de uma eficiente estrutura de disseminação social que a justifique.

Em Helena, o coletivo Sáfaro dá continuidade à investigação iniciada em Medeia, no sentido de perceber e elaborar esteticamente as contradições destes processos, evidenciar seus interstícios, seus sujeitos, colocá-los em debate público através da criação artística.

Helena de Eurípides


Em Helena, Eurípides aborda uma versão menos conhecida da rainha espartana, eleita para sua sorte ou malogro a mais bela das mulheres sobre a terra. Em textos anteriores, como Hécuba e As Troianas, o autor trata a figura de Helena a partir da perspectiva mais tradicional e conhecida do mito, como uma mulher fútil e de moral fraca, deslumbrada com o poder de sua própria beleza, que é levada para Tróia e se torna o motivo da sangrenta e longa guerra entre gregos e troianos. Neste texto, quase do fim de sua vida, o autor, no entanto, nos mostra uma versão quase apócrifa do mito, que refaz a figura de Helena trazendo maior profundidade à personagem e colocando em discussão os motivos reais da guerra.

Em Helena, a protagonista é levada em segredo por intervenção divina (de Hera, esposa de Zeus) para o Egito, enquanto em seu lugar um eidolon (imagem falsa, ilusão, puro semblante) é levado à Tróia, causando todos os conflitos conhecidos da Guerra. Helena passa vinte anos no Egito, sob proteção do rei Proteu, quando então chega à costa um navio naufragado. Trata-se de Menelau, seu esposo, que passou oito anos vagando pelo Mediterrâneo sem que os ventos o favorecessem a voltar à Grécia. Junto a Menelau está o eidolon de Helena, resgatado na vitória sobre Tróia. Ao encontrar a Helena "verdadeira", Menelau recebe a notícia de que o eidolon desapareceu, dissipando-se no ar enquanto seus soldados o protegiam na praia.

Os dois, Menelau e Helena, ao se reconhecerem, percebem o imenso engano que havia sido a guerra contra Tróia, e tentam extrair o sentido de tal manipulação, sem sucesso. Logo, decidem retornar a Esparta o quanto antes, mas o novo rei do Egito, filho de Proteu falecido, deseja casar-se com Helena e matará Menelau assim que souber de sua presença. Helena antecipa-se e informa ao rei que seu marido chegou náufrago e morto à praia, e que para que esteja livre para casar novamente precisa sepultar o corpo de acordo com a tradição grega: aquele que morre no mar deve ser sepultado no mar. Com isso, Helena recebe a embarcação e segue para o mar, encenando a cerimônia fúnebre do marido, que logo se revela e com a ajuda de seus soldados toma a embarcação e segue para a Grécia.

A peculiaridade desta tragédia está em que o momento trágico não é a catástrofe para o herói trágico; pelo contrário, Helena e Menelau vivenciam um final relativamente feliz na peça. O trágico o é principalmente para o público, que vê no reencontro do casal o vazio de sentido da experiência da guerra. Se Helena era o motivo alegado da guerra contra Tróia, mas se também não era realmente ela quem estava lá, qual terá sido então o sentido real da guerra? Qual o intuito divino por trás de tal manipulação? A imagem de Menelau, rei de Esparta, chegando náufrago e maltrapilho na praia reforça uma das idéias centrais de algumas peças de Eurípides, de que na guerra mesmo os vitoriosos saem derrotados. No contexto em que foi apresentada originalmente, em Atenas há mais de 2400 anos, a peça adquire um tom pacifista em face dos conflitos entre as cidades-Estado gregas.

Em nosso projeto, no entanto, o texto surge como uma plataforma para a criação dos mais diversos materiais artísticos, através do qual tentaremos elaborar uma discussão sobre a midiatização da violência, a militarização da sociedade contemporânea e a violência urbana do ponto de vista de classes.

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