deslocar-se na cidade mediante um algoritmo pré-definido.
operar uma insuportável abstração. do tamanho de uma bomba. 
deriva programada. 
causar um tilt entre cidade e imagem, entre um muro e o número. 
uma maior quantidade de variáveis no algoritmo.
a impossibilidade do movimento mediante a ingestão exagerada de fórmulas abstratas.
revelar poderes.

DUAS ALEGORIAS DE BAUDELAIRE

OS PROJETOS
Sozinho, passeando em um grande parque, ele dizia para si mesmo: “Como ela ficaria bela em seu vestido real, complicado e faustoso, descendo, através da atmosfera de uma bela tarde, os degraus de mármore de um palácio diante de grandes gramados e laguinhos! Porque ela tem, naturalmente, o ar de uma princesa.”
Passando, mais tarde, por uma rua, ele parou diante de uma loja de gravuras e encontrando numa pasta uma estampa representando uma paisagem tropical. se disse: “Não! Não é num palácio que eu desejaria possuir sua querida vida. Nós não estaríamos em casa. Porque em suas paredes incrustadas de ouro não haveria lugar para pendurar o seu retrato; naquelas solenes galerias não existiriam recantos para nossa intimidade. Decididamente, é lá que é preciso ficar para cultivar o sonho de minha vida.”

E, analisando com os olhos todos os detalhes da gravura, ele continuou, mentalmente: “À beira-mar, uma bela cabana de madeira, cercada por todas essas árvores bizarras e luminosas das quais me esqueço os nomes..., na atmosfera um odor inebriante, indefinível.., na cabana, um perfume de rosas e almíscar, Mais longe, atrás de nosso pequeno domínio, as pontas de mastros dos botes oscilando com as ondas.,, em volta de nós, além do quarto iluminado por uma luz rósea tamisada pelas cortinas, decoradas com esteiras frescas e flores capitosas com algumas cadeiras de rococó português, de uma madeira pesada, tenebrosa (onde ela repousaria, calmamente, refrescando-se e fumando um tabaco levemente opiáceo); além do terraço, a gritaria de pássaros embriagados pelas luzes e a tagarelagem das negrinhas.., e à noite, para servir de acompanhamento a meus sonhos, o canto lamentoso de árvores musicais, de melancólicas casuarinas. Sim, na verdade, é bem este cenário lá que eu procurava. Que faria eu com um palácio?”
E, mais adiante, como ele seguisse por uma grande avenida, vislumbrou um albergue asseado onde, de uma janela alegrada por cortinas indianas multicores, penduravam-se duas cabeças sorridentes. E, logo a seguir: “É preciso”, disse para si, “que meu pensamento seja um grande vagabundo para ir procurar tão longe o que está perto de mim. O prazer e a felicidade estão no primeiro albergue encontrado, no albergue do acaso, tão fecundo e voluptuoso. Uma lareira, faianças vistosas, um jantar passável, um vinho rude e um leito muito largo com lençóis um pouco ásperos, mas frescos; o que há de melhor?”

E voltando para casa sozinho àquela hora onde os conselhos da sabedoria não são mais abafados pelo burburinho da vida exterior, ele se disse: “Tive hoje, em sonho, três domicílios onde encontrei prazeres iguais. Por que obrigar meu corpo a mudar de lugar se minha alma viaja tão rapidamente? De que serve a execução de projetos, posto que o projeto, em si, é já um gozo suficiente?"




O MAU VIDRACEIRO

certas naturezas puramente contemplativas e de todo impróprias à ação, que, entretanto, sob um impulso misterioso e desconhecido, agem às vezes com uma rapidez da qual não acreditavam que fossem capazes.

Tal como alguém que, temendo encontrar com seu porteiro uma novidade triste, perambula, covardemente, diante da porta sem ousar entrar, ou, então, que conserva por quinze dias uma carta sem abrir, ou o que só se resigna, após seis meses, a tomar uma decisão que já era necessária há um ano, se sente, bruscamente, precipitado a agir por uma força irresistível como a flecha em um arco distendido. O moralista e o médico, que pretendem saber tudo, não podem explicar de onde vem tão subitamente uma tão louca energia a essas almas preguiçosas e voluptuosas e, como incapazes de realizar as coisas mais simples e as mais necessárias, acham em certo minuto uma luxuosa coragem para executar os atos mais absurdos e, freqüentemente, mais perigosos.

Um de meus amigos, o mais impulsivo sonhador que já existiu, pôs uma vez fogo em uma floresta para ver, dizia ele, se a fogo alastrava-se tão facilmente coma se afirma geralmente. Dez vezes seguidas a experiência falhou, mas, na décima primeira, resultou um sucesso.

Um outro acendeu um charuto ao lado de um barril de pólvora, “para ver, para saber, para tentar o destino, para se constranger a fazer prova de energia, para bancar a jogador, para conhecer os prazeres da ansiedade, por nada, por capricho, por ociosidade”.

É uma espécie de energia que salta do tédio e do devaneio; e aqueles que têm tais manifestações são, em geral, como eu disse, os mais indolentes e os mais sonhadores dos seres.

Um outro tímido, desses que baixam os olhos diante do olhar dos outros homens, a tal ponto que precisa reunir toda a força de sua pobre vontade para entrar num café ou passar na frente do guichê de um teatro onde os controladores lhe parecem investidos da majestade de Minas, de Éaco e de Radamante, saltará, bruscamente, ao pescoço de um velho que passa a seu lado e o beijará com entusiasmo diante da multidão atônita.

Por quê? Porque... essa fisionomia era-lhe irresistivelmente simpática? Talvez; porém é mais legítimo supor que ele mesmo não saiba por quê.

Eu fui mais de uma vez vítima dessas crises e desses surtos que nos autorizam a crer que demônios maliciosos deslizam em nós e nos fazem executar, sem nosso conhecimento, suas mais absurdas vontades.

Uma manhã levantei-me aborrecido, triste, fatigado de ociosidade, preguiçoso e disposto, parecia-me, a fazer qualquer coisa de grande, uma ação de brilho... e, então, abri a janela!

(Observem, peço-lhes, que o espírito de mistificação que, em algumas pessoas, não é o resultado de um trabalho, de uma combinação, mas de uma inspiração fortuita, participa muito, quanto mais não seja pelo ardor do desejo, desse humor, histérico segundo os médicos, satânico segundo aqueles que pensam um pouco melhor que os médicos, que nos impele, sem resistência, para uma porção de ações perigosas ou inconvenientes.)

A primeira pessoa que percebi na rua foi um vidraceiro, cujo grito agudo, desafinado, subia até mim, atravessando a atmosfera parisiense, pesada e suja. Ser-me-ia, além disso, impossível dizer por que eu tive a atenção chamada para esse pobre homem. Tomei-me de uma raiva tão súbita quanto despótica.

“Hei! Hei!”, gritei, para que subisse. Enquanto eu refletia, não sem alguma alegria, que o quarto ficando no sexto andar e sendo a escada muito estreita, o homem teria algum trabalho na sua ascensão e, certamente, engataria em alguns lugares sua frágil mercadoria.

Enfim ele apareceu e eu lhe disse: “Como, o senhor não tem vidro de cores? Vidros rosas, vermelhos, azuis, vidros mágicos, vidros do paraíso? Impudente é o que o senhor é! E o senhor ousa passear por quarteirões pobres e não tem nem mesmo vidros que façam ver que a vida é bela!” E eu o empurrei em direção à escada, na qual ele tropeçou, resmungando.

Aproximei-me do balcão e tomei um pequeno vaso de flores, e quando o homem reapareceu ao abrir a porta eu deixei cair, perpendicularmente, meu engenho de guerra sobre o rebordo posterior de seus ganchos, e, como o choque o derrubou, ele acabou de quebrar sob seu dorso toda a sua pobre fortuna ambulatória que resultou na fragorosa barulheira de um palácio de cristal destruído por um raio. E, ébrio de minha loucura, gritei para ele, furiosamente: “A vida é bela! A vida é bela!”

Essas brincadeiras nervosas não são sem perigo e pode-se, às vezes, pagá-las caro. Mas o que importa a eternidade da danação a quem achou em um segundo o infinito da alegria.

Experimentos para cartaz









MACUNAÍMA NO CAVEIRÃO DO NASCIMENTO

Por Silvio Carneiro



É possível que, de uns tempos pra cá, a figura do herói brasileiro esteja sofrendo algumas mudanças. Paralelamente, o sucesso de filmes que investigam o universo paralelo das favelas e da miséria da nação aos poucos se apropria não de um modo de ver o outro, mas de narrar a história deste outro. Começou com o olhar inocente e infantil de Central do Brasil, cresceu e tomou forma no bang-bang à italiana e tarantinesco da Cidade de Deus e agora, o imaginário coletivo entra na onda da Tropa de Elite. Neste ponto, o olhar e a letra sobre a miséria configuram uma nova ordem de discurso que se identifica na voz de um homem contra o "sistema". É a narrativa do herói, que por mais distante e polêmico que seja, cala a socos e pontapés qualquer alternativa política que não seja a do bom moço. A luta do bem contra o mal está posta. Resta o preto e o branco do pensamento maniqueísta, coloração monótona que encanta os espectadores pela ladainha da luta contra o sistema, espectador mantido desperto graças aos tiros e rock pauleira que a estratégia do choque sustenta. Nesta ordem em que a guerra é o que mantém vivo o protagonista-narrador, Macunaíma é o primeiro "a ser passado", torturado no patrimônio maior de Padilha: o elogio à polícia justa.
Quem manda ser vagabundo e preguiçoso? Viver de cacau, fugindo das saúvas - símbolo do trabalho de que Macunaíma tanto quer se distanciar – consumindo lagostas, cunhãs ou produtos industrializados da Rua dos Ingleses. Maneira irônica de se apresentar um herói brasileiro em fins da década de 1920, deixando em dúvida se o projeto de Mário de Andrade parte de um campo conservador do Brasil-paulista, ou de um elogio do Brasil que insiste em não ser moderno. Seu herói representa o povo das terras distantes que visitou. Negro, branco e índio têm suas representações entre o adulto, o porvir e o velho, respectivamente. Malandro por excelência, "o herói sem nenhum caráter" representa a astúcia amoral de quem não deixa de querer ficar por cima na hierarquia social, contrastando com o fim moribundo em terras de origens. Através do herói estão cifradas tanto a lenda de que "aqui tudo se colhe", quanto a do povo que sempre se "arranja no jeitinho". Eurocêntrico ou tropical, Macunaíma ainda preserva a ambiguidade que prepara um discurso aberto de um país que ainda não encerrou sua história.
Herói datado de um país que não existe mais? É bem provável que sim; sobretudo, se o ponto de partida de sua interpretação for localizado historicamente: o país dos anos de Macunaíma é bem diverso dos labirintos do Secretário Nascimento. Mas se analisarmos pela ordem das razões do discurso macunaímico é bem provável que algo se preserve para pensarmos a instância nacional. Macunaíma já esteve bem próximo do que seria o jeitinho brasileiro de resolver a vida. Seu maior embate se daria com o burguês-paulista-ameríndio-italiano Venceslau Pietro Petra, morto por seu próprio capricho, no caldeirão que a Caipora preparava suas vítimas. Assim como o Ulisses homérico, Macunaíma jogava astuciosamente com seu adversário. Não há um enfrentamento, apenas pequenas peças pregadas pelo herói que busca, assim, recuperar sua muiraquitã. Se em alguma hora, o herói invade a casa de seu adversário, logo trata de esconder-se, fugir, blefar – modos de se esquivar daquilo que projeta como destino.
O Nascimento de Tropa de Elite opta por um caminho diverso... Não se trata de adotar estratégias esguias, mas de estabelecer táticas eficientes para se ganhar espaço. Aqui, o único prazer é a guerra e a aniquilação a sangue frio dos adversários.
Por que a mudança do roteiro? A resposta de que o Brasil mudou – e, com ele, seus heróis – é ainda insuficiente para se entender o sentido eleito desta mudança. Por que o substituto eleito de Macunaíma é Nascimento, uma vez que são tão distintos?
***
A comparação é fértil, mas gostaria de atentar alguns pontos sobre a natureza da personagem literária do herói, compreendendo o que se deixa para trás quando Macunaíma entra no Caveirão do Nascimento (estranho nome para um assassino). É provável que o meliante jamais fosse compreendido pelo exército de Nascimento. São duas gramáticas distintas, quase estrangeiras entre si. Enquanto o primeiro procura catalogar as espécies de um Brasil em aberto, o capitão articula o vocabulário do estado sitiado. "Não gostou? Pede pra sair, fanfarrão!" – um dos motes sádicos que mais circulam neste imaginário. Na contrapartida, é bem provável que Macunaíma responderia com longas reticências: "Ai! Que preguiça...". Ficamos assim: "Ame-o ou deixe-o!" contra o "Deixe estar...". Seguir esta trilha nos leva a explorar uma característica muito apropriada do herói enquanto voz de um universo discursivo. Através dele, um mundo passa a ser organizado.
Sob este prisma, Macunaíma seria reprovado. Aparentemente, nada mais contrário à ordem do que este herói. Ao primeiro olhar, sua narrativa está longe de impor uma ordem: mitos europeus se misturam com lendas nativas; por vezes, aquilo que seria o fio condutor, a busca do muiraquitã na luta contra Piaimã, é entrecortado por aventuras cujo sentido parece não aderir aos intentos do herói. Diferentemente ocorre em Tropa de Elite, que, em suas duas edições, projeta missões que devem ser cumpridas – o que orienta a narrativa heróica: seja arranjar o substituto do cansado Capitão Nascimento ou derrubar o "sistema". Assim, a sequência deste filme procura organizar o nosso olhar, discernindo o mundo civil do policial e, no interior deste, o policial incorruptível do corrupto, o incompetente do competente, a polícia e a política. A objetividade da câmera é implacável na sua capacidade de desenvolver categorias, mesmo que desviada por recuos no tempo narrativo. Com este realismo categórico vem a necessidade de estereótipos: o estudante classe média maconheiro, o policial bonzinho, o capitão severo, o político corrupto, o político bonzinho (ainda que faltem tipos sociais essenciais: a elite propriamente e os eternos invisíveis – que servem mais como figurante e alvo de bala do que propriamente como alguém portador de direitos e linguagem).
Contrário a estereótipos, Macunaíma assume a todos: é o preguiçoso, o triunfante, o derrotado moribundo, o branco que segue para a cidade grande, o homem com cabeça de criança, o bicho-do-mato que se transforma em príncipe. Referências de transformação, metamorfoses difíceis de acompanhar. Seria Gilda de Mello quem procurou o que sustenta o discurso do livro como algo coeso. Não se trata do fato de que a narrativa está centrada nas peripécias de um personagem – posto que é metamorforseante. A unidade de Macunaíma também não está, para a leitora, na circularidade quase odisséica do herói. A coesão se faz pelaforma estética, naquilo que Mário de Andrade sempre preservou: a forma musical - traduzida em literatura no Macunaíma. De maneira diversa à imagem, a arte musical fornece um território de abstração pelo qual suas formas se entrelaçam. A ousadia de Mário de Andrade está em compor uma obra que circule por entre formas rapsódicas, e que desvia a criação artística para territórios que seguem além das dicotomias clássicas: Erudito versus Popular, Nacional versus Europeu, são oposições ultrapassadas nos episódios de Macunaíma.
E o autor ultrapassa em dois sentidos: o nivelamento estético, quando as formas estéticas ascendem para um nível superior de arte culta; e odesnivelamento estético, quando o movimento segue o sentido contrário (Souza, 2003, pp. 20-21). Não se trata aqui, pois, de estilizar a produção popular. Mário de Andrade estaria atento para o fato de que nas canções de roda infantil estão expressas formas estéticas elaboradas. Ou seja, o que se pretende aqui é uma dialética entre os níveis de produção artística capaz de alcançar uma integração que não descarte do universo da linguagem nenhum elemento. Algo neste sentido aparece em sua "Carta pras Icamiabas". Ali, Macunaíma é capaz de falar com o populacho e com as ciências, de travar debates com seres naturais e celestiais. E através da narrativa de sua aventura, todos estes elementos ganham vida, conferindo ao outro um lugar na ordem discursiva.
Movimento que, insisto, não existe em nenhum momento em Tropa de Elite: os estereótipos não dão conta de mostrar suas diferenças. Sob o olhar do Capitão Nascimento o universo discursivo não permite as zonas de dúvida, senão as dele próprio. Mesmo quando André, o policial "racional" e "do bem", resolve se misturar com o universo paralelo dos civis, o herói já antecipa ao espectador: "vai dar merda...", conforme repete insistentemente Nascimento em diversos episódios. Aqui, aos poucos, se revela o sentido do universo discursivo do novo herói: sua linguagem é a da guerra, sua gramática é a estratégia de um general solitário prestes a perder a luta contra "o sistema".
No universo da imagem, a câmera também sustenta este universo bélico: uma luz verde-claro que acompanha o ambiente de escritório, outra que sustenta a imagem noturna na batalha da favela; um movimento de câmara que acompanha a ótica de Nascimento. Dentre todos estes elementos, nada mais fechado do que o universo discursivo apresentado pela estética de Padilha. Longe de algumas experiências feitas por seu companheiro Marcos Prado, como Estamira, o olhar de Tropa de Elite é o da guerra, algo que ainda fica mais explícito no segundo filme, quando Nascimento sai da cena do front e ocupa os escritórios da inteligência do Estado. Em ambos os casos, embora com mudanças de cenário, o sentido discursivo ainda é o fechamento, a definição, o juízo sobre as categorias e seus estereótipos. De modo diverso a Macunaíma, há apenas um sentido estético, o nivelamento (com a competência na captação de imagem), dispensando qualquer disposição dialética de seus estereótipos. Há o enfrentamento da força das imagens, mas não há movimento: apenas a monotonia discursiva do Nascimento. Peças estereotipadas que fazem correr o sistema imóvel: definitivamente, o outro é o inimigo.
E Macunaíma não expressa a violência? Não há lutas, sangue e morte? Venceslau Pietro Petra não seria o inimigo-outro a quem Macunaíma havia jurado vingança? De fato, não podemos esquecer este lado. Mesmo o erotismo deste herói sem nenhum caráter é, no episódio com a amada Ci, banhado de sangue no interior da mata. Desleal com seus amigos, Macunaíma não ocupa o lugar do herói-santo – é o "Grande Mau" (conforme Mário de Andrade traduz pela leitura do folclore das tribos venezuelana e guianas descritas por Koch-Grünberg). Macunaíma é, pois antes a passagem das ambiguidades, e não a síntese de um projeto de Brasil. Antes de nossas conclusões comparativas com o herói Nascimento, vejamos alguns aspectos desta ambiguidade macunaímica.
***
"Muita saúva e pouca saúde, os problemas do Brasil são", eis um dístico que Macunaíma insiste. Aqui se apresenta o conflito macunaímico: simbolicamente estão dispostos o trabalho das formigas e o estado natural a que a doença procura nos limitar. Escapar deste paradoxo da formação é o sinal do Brasil moderno projetado por Mário de Andrade. Desta dupla, Venceslau Pietro Petra seria apenas o resultado, o Latino-europeu ganancioso, devorador de gente, colecionador das riquezas e felicidade do país cujos males são o excesso de saúvas e a falta de saúde. Argumento mais astucioso do que a saída fácil de declarar guerra ao "sistema", seja lá o que isso significa.
De fato, é considerável que a leitura de Macunaíma e sua vitória sobre Piaimã seja menos triunfante do que é narrado. Mário de Andrade deixa aqui a marca de uma dúvida, que permite o exercício de reflexão. Seu herói volta, embora restituído, moribundo para Uiracoera. Paralelamente, não se pode dizer que teve uma vida de rei na cidade, onde, impulsionado por seus desejos, perdia nos jogos de azar e do amor. Conforme lembra Bosi, não há síntese possível na dinâmica desta obra: o herói não encontra felicidade nem na mata, nem na cidade: "nem a cidade representa uma saída para a selva, nem a selva para a cidade. O sentido é o impasse" (Bosi, 1988, p. 139) – e por isso mesmo, o destino final – desolado, e não apoteótico - é a esfera celeste, quando Macunaíma transforma-se em Ursa Maior.
Algo da ordem do impasse ainda sustenta as reflexões do Capitão Nascimento - mas não do secretário. Por isso, Tropa de Elite 1 contém elementos mais interessantes do que sua sequência. Nesta primeira versão, o herói ainda não se determina enquanto tal. Naquele momento, várias foram as entrevistas em que Padilha insistiu em desclassificar o heroísmo de Nascimento. Havia até então neste personagem algo de ambíguo, na medida em que, em seu trabalho de formação, ele fazia e não fazia parte do sistema, encarnando por vezes a voz desta gigantomaquia criada socialmente. Ao mesmo tempo em que procura solucionar estratégias e, em alguma medida, faz o que considera ser justo, não deixa de resolver sua ordem no impulso da violência, sob a justificativa eterna de que estamos numa guerra. Na ordem da ambiguidade, era interessante ver como a ideologia local se aterrorizava com o Nascimento que, ao mesmo tempo, espanca os maconheiros da classe média e os "aviõezinhos" da favela.
Em Tropa de Elite 2 esta ambiguidade do Nascimento se esvai. Agora é ele contra o sistema. Padilha resolve assim responder a algumas críticas. Até mesmo, a classe média sai um pouco satisfeita do filme, quando o filho do Nascimento procura aliviar sua amiga que levava consigo algumas "trouxas" e é presa em flagrante. Nada mais satisfatório para seu público. Nada mais agradável a este mesmo público do que o espancamento catártico no político corrupto. Chuck Norris com falas e uma melhor interpretação, Nascimento não perdoa a quem sai dos rigores da lei. Neste sentido, o segundo filme perde muito do que poderia ser tecido a partir do primeiro. Recuo de Padilha diante do "sistema"? Sistema que, aliás, nunca é definido, embora dito repetidamente o seu nome. Conteúdo sem forma, o "sistema" torna-se uma estrutura móvel, sustentada por uma ordem de estereótipos presentes em qualquer lugar, sobretudo nos corredores do poder e da milícia, na família da classe média – embora nunca nas decisões empresariais. Até se fala do dinheiro que sustenta o sistema, bem no plano de sobrevôo final, com o discurso rigoroso de Nascimento pairando sobre a Esplanada dos Ministérios finalizando na bandeira nacional – recentemente atingida por um manifestante que lhe ateou fogo, enquanto pronunciava um discurso confuso contra o "sistema" – mas a origem do dinheiro apenas é insinuada.
Paranóias a parte de um país que sofre, a falta de definição do sistema, acompanha o subtítulo de Tropa de Elite 2: "agora o inimigo é outro" – nada mais coerente: depositar no outro o perigo é estratégia recorrente de quem opta pela saída fácil de que o "sistema" é o adversário. Neste sentido, vale tudo contra o outro, seja lá quem ele for. Qualquer estereótipo do sistema deve ser destruído sistematicamente, aniquilado pelo único narrador do filme: o ego justo, embora enfraquecido e cansado, do capitão Nascimento. Estratégia bem diferente de Macunaíma, que carrega consigo o Grande Mau, que, em suas mentiras e astúcias, foge dos adversários, e percorre o Brasil nesta fuga. Mário de Andrade analisa o Brasil a partir deste personagem nômade, que jamais aceitou o sedentarismo da cadeira pública de uma secretaria para manifestar o que é, o que não é e o que poderia ser o Brasil. Contrariamente ao impasse de Macunaíma, Nascimento sofre de um falso dilema: o dilema da guerra em que ou resta ele ou o outro.
Daí as estratégias adotadas serem tão díspares: em Macunaíma, o que prevalece é a preguiça, o deixar-se levar ainda que tenha alguns objetivos, como a recuperação do muiraquitã. Estratégia presente no dandebenjaminiano, contrário ao ritmo do trabalho moderno: a preguiça é a tradução perfeita de conquistar o seu próprio tempo: fazer o máximo com o menor esforço possível. Deste modo, a preguiça é anti-natural, pois há um trabalho para ser preguiçoso, para não se deixar morrer – mas é também uma resistência ao trabalho moderno, que engole o homem na poeira do tempo. Nascimento, por sua vez, tem em mente sempre umaestratégia, o artifício diretamente oposto à preguiça, na medida em que também busca utilizar minimamente recursos, mas, diferentemente desta, tem em vista os fins. Explico-me: na preguiça, os meios são mais importantes do que os fins – aliás, neste pragmatismo, ela é o fim de si mesma. De maneira oposta, embora com naturezas próximas, a estratégia sempre busca um fim, não importa quais os meios. Daí o tempo na estratégia é a rapidez, a eficiência. Neutralizar e eliminar o inimigo o quanto antes. Para Nascimento, é necessário, sobretudo, sobreviver; enquanto para Macunaíma, o importante é viver.
***
Por fim, uma advertência. Este ensaio não é um elogio a um modelo heróico em detrimento de outro. Apenas gostaria de, a partir da marca simbólica do herói – com todos os problemas que existem num projeto nacionalizante como este – investigar algo da ordem do imaginário coletivo que circula pelo sistema cultural. Sequer, é possível dizer que Macunaíma seja o modelo nacional por excelência, dado que junto a ele existem diversos ensaios sobre a identidade nacional que exploram símbolos externos ao eixo particular de um país de proporções tão grandes. Talvez, ainda esteja para ser feito um estudo sobre o imaginário coletivo que não se fixe nos limites da formação da nação, como até hoje herdamos dos pioneiros da República Velha. Digressões a parte, o objetivo deste ensaio é antes trazer a tona a variação no modo de narrarmos a produção cultural e o universo simbólico que se mobiliza através disso. Procuramos em Macunaíma e em Tropa de Elite 1e 2 modelos que reflitam variações e limites. Modelos que se aproximam enquanto procuram interpretar as mazelas nacionais, mas que se afastam nos projetos estéticos e seus alcances. Algo que se desmistifica em uma última observação sobre a natureza dos sujeitos-narradores.
Desde sempre, Tropa de Elite evidencia a voz de capitão Nascimento, que, entre as suas dúvidas e as do próprio diretor Padilha, acaba tomando a tônica discursiva. É ele quem investiga, julga, prende e mata. Para além do bem e do mal, Nascimento é apenas fruto de uma sociedade corrompida – como indica o início do filme quando afirma: "a sociedade o formou pra isso". Apoiado em uma sociedade sem persona, o herói tem identificação direta com a Lei, ou com o modo como ele a interpreta. Assim, Nascimento narra sua própria história: autor de si mesmo, justifica suas atrocidades diante do sistema e da sociedade – algo que se encerra na versão moralizante-espetacular da CPI. Macunaíma segue um caminho diverso: alguém narra suas desventuras, configurando em si uma alteridade enigmática que pretendemos desvendar no decorrer da leitura. Assim, a relação entre o leitor e Macunaíma, não é imediata – há uma interferência – inexistente, aliás, em Tropa de Elite. Aos poucos, descobrimos quem é este narrador de Macunaíma: um papagaio, o último ser nativo com quem Macunaíma reserva suas conversas.
Seria esta a última peça que o herói sem caráter nos havia reservado. Jamais suspeitaríamos que seria uma ave a responsável pela narrativa. Opção astuciosa, visto que o papagaio seria aquele modelo natural mais próximo do campo simbólico da linguagem, capaz de emitir palavras. Mário de Andrade estabelece aqui a passagem dos dois universos presentes no impasse de sua obra: a natureza e a civilização. E aqui temos um curto-circuito com o herói contemporâneo de Tropa de Elite. Se, por um lado, Macunaíma se utiliza do animal mimético para narrar sua humanidade heróica à gente de seu povo, Nascimento, por outro, segue o caminho inverso: exclui de si qualquer universo político que não seja o espetáculo e a publicidade da tragédia da CPI, da verdade a ser confessada nos tribunais parlamentares. Mas talvez, não esteja aí sua catarse – tudo se resolve quando finalmente Nascimento mostra a que veio: derrubar o sistema no pau. Enquanto Secretário, fica atado às amarras políticas, enquanto Capitão, ocupa o território indeterminado da polícia – aquém e além da política. Tudo se resolve quando Nascimento opta seguir pelo caminho inverso de Macunaíma: volta à natureza, onde encontra a força e a brutalidade que o sistema lhe ensinou. Eis aqui o verdadeiro Nascimento e o gozo de seu público! Resta pensar que entre a animalização do discurso e a expressão discursiva da natureza, Macunaíma se encontra com o Caveirão e, para não ser preso pelo sistema, ocupa agora a cadeia celeste, observando de cima a brutalidade dos "heróis" nacionais.

Bibliografia:
ANDRADE, Mário de. Macunaíma – O herói sem nenhum caráter, São Paulo: Ed Martins Fontes, s/d.
BOSI, Alfredo. "Situação de Macunaíma" in Céu, Inferno – Ensaios de Crítica Literária e Ideologia, São Paulo: Ed. Ática.
CAMPOS, Haroldo de. Morfologia do Macunaíma, São Paulo: Perspectiva, 1973.
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. "O mito de Macunaíma" in O Espírito e a Letra (vol. 1), São Paulo: Cia. das Letras, 1996.
SOARES, Luiz E. et alli. Elite da Tropa, Ponto de Leitura, 2011.
___________________. Elite da Tropa 2, Ed. Nova Fronteira, 2010.

Intervenção - Carta #1





"Desculpe a demora. Envio-lhe este punhado de farinha de trigo, da melhor qualidade que pude obter, como símbolo do reconhecimento da dívida histórica que meu povo tem para com o seu."






Debate #3


3º Debate realizado pelo Sáfaro no Teatro de Arena Eugênio Kusnet.
Ivan Delmanto, diretor da II Trupe de Choque, fala sobre o conceito de História para Walter Benjamin.

Introdução a uma crítica da geografia urbana

Guy Debord

De todos os acontecimentos que participamos, com ou sem interesse, a busca fragmentária de uma nova forma de vida é o único aspecto ainda apaixonante. É necessário desfazer aquelas disciplinas que, como a estética e outras, se revelaram rapidamente insuficientes para essa busca. Deveriam se definir então alguns campos de observação provisórios. E entre eles a observação de certos processos do acaso e do previsível que se dão nas ruas.

O termo psicogeografia, sugerido por um iletrado Kabyle para designar o conjunto de fenômenos que alguns de nós investigávamos no verão de 1953, não parece demasiado impróprio. Não contradiz a perspectiva materialista dos acontecimentos da vida e do pensamento provocados pela natureza objetiva. A geografia, por exemplo, trata da ação determinante das forças naturais gerais, como a composição dos solos ou as condições climáticas, sobre as estruturas econômicas de uma sociedade e, por conseqüência, da concepção que esta possa criar do mundo. A psicogeografia se propunha o estudo das leis precisas e dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente organizado ou não, em função de sua influência direta sobre o comportamento afetivo dos indivíduos. O adjetivo psicogeográfico, que conserva uma incertitude bastante agradável, pode então ser aplicado às descobertas feitas por esse tipo de investigação, aos resultados de sua influência sobre os sentimentos humanos, e inclusive de maneira geral a toda situação ou conduta que pareça revelar o mesmo espírito de descobrimento.

Se disse durante muito tempo que o deserto é monoteísta. Se encontrará ilógica, ou desprovida de interesse, a constatação de que o distrito de Paris entre a Praça Contrescarpe e a Rua Arbalète conduz ao ateísmo, ao esquecimento e a desorientação das influências habituais?

É conveniente ter uma concepção historicamente relativa do utilitário. A necessidade de dispor de espaços livres que permitem a rápida circulação de tropas e o emprego da artilharia contra as Insurreições esteve na origem do plano de embelezamento urbano adotado pelo segundo império. Mas desde qualquer ponto de vista, exceto o policial, a Paris de Haussmann é uma cidade construída por um idiota, plena de ruído e fúria, que nada significa. Hoje o principal problema do urbanismo é resolver o problema da circulação de uma quantidade rapidamente crescente de automóveis. Podemos pensar que o urbanismo vindouro se aplicará a construções, igualmente utilitárias, que concedam a maior consideração às possibilidades psicogeográficas.

Além do mais, a abundância atual de veículos privados não é mais que o resultado da propaganda constante pela qual a produção capitalista persuade as massas – e este é um de seus êxitos mais desconcertantes – de que a possessão de um carro é precisamente um dos privilégios que nossa sociedade reserva a seus privilegiados. (Por outro lado, o progresso confuso se nega a si mesmo: alguém pode gozar do espetáculo de um oficial de polícia convidando em um anúncio publicitário aos parisienses proprietários de automóveis a utilizar transportes públicos).

Posto que encontramos a idéia de privilégio inclusive em assuntos tão banais, e que sabemos com que certa cólera tanta gente – por pouco privilegiada que seja – está disposta a defender suas medíocres conquistas, é necessário constatar que todos estes detalhes participam de uma idéia burguesa de felicidade, idéia mantida por um sistema de publicidade que engloba tanto a estética de Malraux como os imperativos da Coca-Cola, e cuja crise deve ser provocada em qualquer ocasião, por todos os meios.

O primeiro destes meios é sem dúvida a difusão, com um objetivo de provocação sistemática, de um conjunto de propostas tendentes a converter a vida em um jogo apaixonante, e o contínuo menosprezo de todas as diversões para com o uso, na medida em que estas não podem ser desviadas para servir à construção de ambientes. É certo que a maior dificuldade em tal projeto é fazer passar estas propostas aparentemente delirantes para um grau suficiente de séria sedução. Para a obtenção deste resultado se pode imaginar um uso hábil dos meios de comunicação imperantes. Mas também um tipo de abstencionismo provocativo ou de manifestações tendentes à decepção radical dos aficionados destes meios de comunicação, podem fomentar inegavelmente, sem muito esforço, uma atmosfera de incomodidade extremamente favorável à introdução de novas noções de prazer.

A idéia de que a realização de uma situação eleita depende unicamente do conhecimento rigoroso e da aplicação deliberada de um certo número de técnicas concretas, inspirou o jogo psicogeográfico da semana publicado, não sem certo humor, no número 1 de POTLATCH: «Em função do que você busca, escolha um país, uma cidade mais ou menos populosa, uma rua mais ou menos animada. Construa uma casa. Tire o maior partido de sua decoração e seus arredores. Eleja a estação e a hora. Reuna as pessoas mais adequadas, os discos e as bebidas mais convenientes. A iluminação e a conversação deverão ser as oportunidades para a ocasião, como o tempo atmosférico ou vossas recordações. Se não houve nenhum erro em vossos cálculos, o resultado deve satisfazer-te.»

Devemos trabalhar para inundar o mercado, mesmo que pelo momento não seja mais que o mercado intelectual, com uma massa de desejos cuja realização não rebaixará a capacidade dos meios de ação atuais do homem no mundo material, mas sim a velha organização social. Não carece de interesse político contrapor publicamente tais desejos aos desejos elementares que não nos assombra vermos repetidos incessantemente na indústria cinematográfica ou nas novelas psicológicas, como desse velho carniceiro de Muriac. (Marx explicava ao pobre Proudhon que, em uma sociedade fundada sobre a «miséria», os produtos mais «miseráveis» tem a fatal prerrogativa de servir ao uso do maior número de pessoas).

A transformação revolucionária do mundo, de todos os aspectos do mundo, confirmará todos os sonhos de abundância.

A mudança repentina de ambientes em uma mesma rua no espaço de alguns metros; a clara divisão de uma cidade em zonas de distintas atmosferas psíquicas; a linha de mais forte inclinação – sem relação com o desnível do terreno – que devem seguir os passeios sem propósito; o caráter de atração ou repulsão de certos espaços: tudo isso parece ser ignorado. Em todo caso, não se concebe como dependente de causas que possam ser descobertas através de uma cuidadosa análise, e das quais não de possa tirar partido. As pessoas são conscientes de que alguns bairros são tristes e outros agradáveis. Mas geralmente assumem simplesmente que as ruas elegantes causam um sentimento de satisfação e as ruas pobres são deprimentes, e não vão mais além. De fato, a variedade de possíveis combinações de ambientes, análoga à dissolução dos corpos químicos puros num infinito número de mesclas, gera sentimentos tão diferenciados e tão complexos como os que pode suscitar qualquer outra forma de espetáculo. E a menor investigação revela que as diferentes influências, qualitativas ou quantitativas, dos diversos cenário de uma cidade não se pode determinar somente a partir de uma época ou de um estilo de arquitetura, e ainda menos a partir das condições de vida.

As investigações assim destinadas a se levar a cabo sobre a disposição dos elementos do meio urbano, em relação íntima com as sensações que provocam, não querem ser apresentadas senão como hipóteses audazes que convém corrigir constantemente à luz da experiência, através da crítica e da autocrítica.

Certas pinturas de Chirico, que são claramente provocadas por sensações cuja origem se encontra na arquitetura, podem exercer uma ação de retorno sobre sua base objetiva até transformá-la: tendem a converter-se elas mesmas em maquetes. Inquietantes bairros de arcadas poderiam um dia continuar e complementar o atrativo desta obra.

Não conheço senão esses dois portos ao entardecer pintado por Claude Lorrain, que estão no Louvre e que apresentam dois ambientes urbanos totalmente diversos, para rivalizar em beleza com os cartazes dos planos de metrô de paris. Se entenderá que ao falar aqui de beleza não me refiro a beleza plástica – a nova beleza não pode ser outra que a beleza da situação – senão somente a apresentação particularmente comovedora, em ambos os casos, de uma soma de possibilidades.

Entre diversos meios de intervenção muito difíceis, parece apropriada uma cartografia renovada para sua utilização imediata.

A elaboração de mapas psicogeográficos, inclusive de diversos truques como a equação pouco fundada ou completamente arbitrária, estabelecida entre duas representações topográficas, pode contribuir para esclarecer certos deslocamentos de caráter não precisamente gratuitos, mas sim absolutamente insubmisso às influências habituais. As influências deste tipo estão catalogadas em termos de turismo, droga popular tão repugnante como o lazer ou a compra a crédito.

Recentemente, um amigo me disse que percorreu a região de Harz, na Alemanha, com a ajuda de um mapa da cidade de Londres cujas indicações havia seguido cegamente. Este tipo de jogo é obviamente só um começo medíocre em comparação com uma construção completa da arquitetura e do urbanismo, construção que estará algum dia em poder de todos. Enquanto isso podemos distinguir distintas fases de realizações parciais, meios menos complicados, começando pelo simples deslocamento dos elementos do cenário dos lugares nos quais estamos acostumados a encontrar.

Assim, no número precedente desta revista, Mariën propôs reunir em desordem, quando os recursos mundiais tenham cessado de ser desperdiçados nos projetos irracionais que nos são impostos hoje, as estátuas eqüestres de todas as cidade do mundo em uma planície deserta. Isto ofereceria aos transeuntes – o futuro lhes pertence – o espetáculo de uma carga de cavalaria oficial, que inclusive poderia dedicar-se a memória dos maiores massacradores da história, desde Tamerlan até Ridgway. Aqui vemos reaparecer uma das principais demandas desta geração: o valor educativo.

De fato, não há nada mais a esperar que a tomada de consciência pelas massas ativas das condições de vida que lhes são impostas em todos os domínios e dos meios práticos para combatê-las.

O imaginário é aquilo que tende a converter-se em real, escreveu um autor cujo nome, devido a sua notória degradação intelectual, faz tempo é esquecido. Tal afirmação, pelo que tem de involuntariamente restritiva, pode servir de pedra de toque e fazer justiça a certas paródias de revolução literária: o que tende a permanecer irreal é palavrório.

A vida, da qual somos responsáveis, oferece ao mesmo tempo grandes motivos de desânimo, uma infinidade de diversões e de compensações mais ou menos vulgares. Não passa um ano em que as pessoas que amamos não ceda, por falta de ter compreendido claramente as possibilidades presentes, a alguma capitulação manifesta. Mas isto não reforça o campo inimigo, que conta com milhões de imbecis e no qual se está objetivamente condenado a ser imbecil.

A primeira deficiência moral que permanece é a indulgência, em todas as suas formas.


Guy Debord, 1955

Publicado no # 6 de Les lévres nues (septembro 1955). Traduzido do espanhol.
Saiu hoje o resultado: o Sáfaro foi contemplado no edital de Co-patrocínio de Primeiras Obras Multimídia 2011/2012 do Centro Cultural da Juventude com o projeto Medéia. Meses de trabalho intenso virão.

Narrativa, memória e dívida histórica por Alexandre Mate

Eis uma das contribuições do pesquisador e professor do Instituto de Artes da UNESP Alexandre Mate ao debate realizado pelo Sáfaro no último dia 29.
Na ocasião, o texto foi apresentado como uma introdução ao debate.
Agradecemos infinitamente ao Mate, que, apesar dos vários trabalhos que desenvolve, reservou um bom tempo para organizar este texto.



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