A cidade oxida
A cidade é inconcretizável
A cidade é inconcretizável
Lançamento da Revista DAZIBAO
Lançamento do
primeiro número da revista de crítica de arte
DAZIBAO
[大字報]
com colaborações de:
Bruno Braga
Guilherme Leite Cunha
Leonardo França
Deyson Gilbert
Pablo Helguera
Gustavo Motta
Georgina Orpin
Tiago Santinho
Eyal Weizman
Roberto Winter
Sexta-feira, dia 18 de Novembro
no Ilha's Bar:
http://g.co/maps/jaeqe
a partir das 21h30.
Intervenção Piscina # Vila Rica
Exercício #1 - Quadrinhos
Quadrinhos criados por Mariana Waechter, como exercício gráfico e narrativo, tendo em vista o próximo projeto do Sáfaro. O exercício tem como ponto de partida o texto Hamlet-Machine, do alemão Heiner Muller. Acompanhem a continuidade desta pesquisa.
Amanhã, na Av. Engenheiro Pinto Martins, altura do nº 248, na Vila Rica, ZL, ensaio-intervenção do Sáfaro, a partir das 18h.
Deriva
O que surpreendeu o grupo foi o
fato de a esmagadora maioria da população com a qual entramos em contato
reconhecer no conceito de terrorismo uma coisa que não diz respeito aos
brasileiros, não havendo possibilidade de identificar nenhum, ou quase nenhum,
fato ocorrido no Brasil com a idéia de terrorismo. O termo mais usado pelos
habitantes de São Paulo é “vandalismo” - o que denota uma diferença social,
política e estética na leitura de acontecimentos radicalmente violentos, em
relação a outros países como, por exemplo, os Estados Unidos, França e Inglaterra
e à mídia internacional.
Partindo
desse dado, que denota a inconsistência ideológica e estética do terrorismo no
Brasil, alinhamos nossa reflexão na perspectiva de compreender: o que de fato é
o terrorismo hoje? Que função exerce no cenário sócio-político-cultural
brasileiro e internacional? É possível falar em terrorismo no Brasil, em
considerar sua existência aqui? Diante da nova conjuntura política e econômica
mundial e do novo papel do Brasil neste cenário, estaríamos diante da
emergência de algo próximo ao terrorismo tão perto de nós – terrorismo que até
então julgávamos uma coisa do “Outro”? Enfim, quem são os sujeitos desse
conceito tão contraditório?
Arte, política e a crítica como fetiche
por Deyson Gilbert
extraído da revista Tatuí
É patente hoje, no mundo das artes, o fenômeno de uma curiosa insurgência de ações, trabalhos e discursos dotados de alta pretensão crítica e/ou política. O fenômeno, contudo, não é exclusivo do campo específico das artes.
Haja vista, por exemplo, os recentes exemplos no mundo da moda de coleções supostamente iconoclastas: desfiles que tematizam pontos ditos polêmicos como a anorexia ou a guerra do Iraque, e que colocariam em questão os próprios valores da moda. Operação semelhante também é visível nos meios de comunicação, como, por exemplo, a campanha realizada pela MTV brasileira em 2004, quando por diversas vezes a emissora retirou durante 15 minutos sua programação do ar. Durante esses 15 minutos, junto a um zumbido constante, exibia-se um letreiro que continha a seguinte frase: “desligue a TV e vá ler um livro”. Segundo o diretor-geral da emissora na época, esta teria sido a campanha mais antiTV já realizada, pois seria “a menos hipócrita”. O objetivo seria levar o jovem a ler mais e, consequentemente, melhorar sua escrita, forma de pensar e de construir opiniões: “Só assim poderá ser crítico, ser culto” 1.
O mesmo espírito “crítico” também é observável na campanha publicitária “As coisas como são”, criada pela Maccain Erickson para a marca de refrigerantes Sprite. Dentre as inúmeras peças publicitárias criadas pelo escritório de publicidade, havia um outdoor no qual figuravam bolhas falsas sustentadas por uma série de fios deliberadamente visíveis na imagem, como se estivessem saindo da garrafa azul do refrigerante (versão light). Ao lado da garrafa lia-se o arremate conceitual e brechtiniano junto ao slogan da propaganda: “A garrafa é azul e as borbulhas são falsas para te dar mais sede./as coisas como são”. Não à toa, a propaganda seria classificada por uma empresa de consultoria de marketing, também envolvida no projeto, de “irreverente, ousada e transparente”2. Adjetivos os quais, também não apenas coincidentemente, figuraram diversas vezes na mídia quando do rebuliço causado pelo leilão na Sothebys das peças de Damien Hirst neste ano (2008)3.
Observa-se, portanto, que aquilo que poderia ser descrito como a emergência de um certo “espírito crítico” nas artes hoje, em realidade responde a um processo indefectível no qual todas as áreas da cultura e do capital se encontram inseridas, não mais na perspectiva da cooptação a posteriori, mas já a priori, como recepção festiva e lucrativa: da “moralização ecológica” das empresas e indústrias depois da “revelação al goriana” da catástrofe ambiental, às comemorações do “maio de 68” na Rede Globo; da proliferação do atendimento social burocratizado das ONG´s, à criação do Museu de Arte Contemporânea de Castilla e Leon4.
O que se observa é a gritante capacidade de um sistema econômico, político e cultural se afirmar mediante a crítica (distorcida, cínica, irônica, deslocada, parcial – não importa) de seus postulados anteriores. Cabe aqui a lembrança do diagnóstico de Adorno a respeito da redefinição da idéia de ideologia no mundo do pós-guerra, ou seja, no mundo onde reina a indústria cultural. Para o filósofo, as relações de poder se caracterizariam então menos pelo recalque típico – necessário ao funcionamento da ideologia enquanto “falsa consciência”, ou seja, enquanto instância de ocultamento das contradições existentes em um processo de legitimação da efetividade por um discurso dominante – do que, ao contrário, pela exposição e afirmação nua e crua dessa relação enquanto tal, ou seja, da ideologia enquanto movimento insuficiente de legitimação da realidade. “A ideologia”, escreve Adorno, “em sentido estrito se dá lá onde o que rege são as relações de poder não transparentes em si mesmas, mediadas e, nesse sentido, até atenuadas. Hoje, a sociedade, injustamente censurada por sua complexidade, transformou-se em algo demasiadamente transparente”.5
Essa transparência permite que a crítica hoje a toda e qualquer ideologia se incorpore ao sistema de poder sem que sua presença, ou juízo, altere o engajamento prático dos sujeitos dentro deste. Pois, no final das contas, como esperar um efeito transformador da crítica – visto que em última instância esta sempre responde à necessidade de uma operação de desvelamento – frente a um objeto (agora já se pode falar de um produto) que já de início se expõe em pelo; numa espécie de internalização da crítica, a autoexposição de suas contradições?
Assimilada a ideologia pelos sujeitos sociais da troca (os indivíduos, produtores e consumidores) sem que haja uma crença efetiva em relação à sua legitimidade, a situação dela (a ideologia) ganha assim, hoje, a dimensão de algo próximo a um paradoxo. Pois, ao cumprir seu papel de mediação da consciência frente à realidade, justificando e legitimando esta realidade mediante critérios e valores normativos predeterminados – os conteúdos históricos e sociais da ideologia – ela termina por legitimar prescindindo de legitimidade. Por conseguinte, termina por validar aquela normatividade à revelia mesmo da consciência (por parte do sujeito social da troca) de sua falta de validade. “Daí eles [os sujeitos] poderem ter uma ‘crença desprovida de crença’ (…) na mera existência. Algo resultante de uma efetividade que já traz em si mesma sua própria crítica”.6
É nesse sentido que acreditamos ser preciso compreender os exemplos expostos acima e suas insistentes discursividades “críticas”. Pois, tanto na arte quanto em outras áreas, o que assistimos parece ser a agudização, ou prolongamento, daquilo que Adorno acusava meio século atrás; aquilo que alguns autores da teoria crítica de hoje (Vladimir Safatle, Slavoj Zizek, Jean-François Lyotard) se referem, no contexto de uma “falência da crítica”, como “o modo cínico de ser do capitalismo avançado”. É nesse contexto que aquilo que chamaríamos de crítica passa a surgir não mais como ação esclarecedora, mas, sim, como tautologia: ação que menos revela do que simplesmente repete – “diluição na diarréia”, diria Hélio Oiticica (para voltarmos a nosso ponto de partida no campo das artes plásticas).
Paradoxalmente inutilizada a crítica pela contraditória afirmação de sua plena potência, a sua “falência” se apresenta, na situação atual, talvez como o principal problema frente aos imperativos do capitalismo hoje. Ao menos no que se refere à ação política contra esses imperativos. Contradição não resolvida sobre a qual, incontornavelmente, devemos nos debruçar se quisermos pensar uma saída para a arte, desde já imersa nessa situação.
1 “MTV convence 14% da platéia a desligar a tv”, O Estado de São Paulo, São Paulo, 15 de novembro de 2004.
2 In http://www.plusmedia.com.br/default.aspx?code=369
3 WULLSCHLAGER, Jackie. Damien Hirst muda relação arte-dinheiro. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 de setembro de 2008.
4 CYPRIANO, Fabio. Folha de São Paulo, São Paulo, 11 de abril de 2005, Caderno Ilustrada.
5 ADORNO, Theodor. Sociologische Schriften I, Frankfurt, Suhrkamp, 1980. In: SAFATLE, Vladimir.Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. p.93.
6 SAFATLE, Vladimir. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. p.97.
Como passar um elefante por baixo da porta?
por Gavin Adams
Este texto foi escrito estimulado pelo texto de autoria de Ricardo Rosas, Hibridismo coletivo no Brasil: tranversalidade ou cooptação? Como contribuição à discussão trazida pelo autor, procuro, na minha condição de artista, adicionar uma reflexão sobre a posição dos artistas na cadeia produtiva da arte, com o objetivo de refletir sobre as forças e fragilidade dos coletivos de arte.
Um passado crítico e engajado
O estimulante texto de Ricardo Rosas traz alguns elementos para a compreensão do recente surto de coletivos de artistas no Brasil. Logo ao início de seu texto, Rosas faz um breve mas útil apanhado histórico das práticas coletivas, apontando experiências que legaram diversos caminhos para a atualidade. Uma inflexão crucial que Ricardo sublinha é a oposição dos coletivos à arte pública. É a partir desta oposição que muitas das características que hoje atribuímos aos coletivos se delinearam. Como escreve Ricardo, temos, entre outras características: “a espontaneidade, diálogo com o local, quebra do protocolo ‘sério’ da arte convencional, participação do público, temporalidade volátil, ênfase nas sensações e interpretação”. Mais adiante no texto, o autor amplia o âmbito das implicações críticas destas práticas: “uma atitude crítica não apenas com o meio artístico institucionalizado, mas igualmente com os critérios de valor cultural que se atribui à arte ou dita ‘o que é arte’, bem como sua comercialização”.
A segunda parte do texto observa mais atentamente os coletivos como se apresentam hoje, particularmente frente a pressão da publicidade, que anseia por transportar o hype da arte para suas utopias/mercadoria. A questão mais central aqui parece partir da variedade temática e de ações dos coletivos, onde Ricardo detecta dois riscos.
Minha interpretação dos riscos por ele apontados é que eles são estruturais (isto é, inerentes aos formatos que os coletivos têm adotado). Para mim, as formas abertas de ação, redes fluídas recombinantes, em suas diversas manifestações, constituem tanto a maior força quanto a maior fraqueza dos coletivos. O risco que se corre seria de ter uma ação mais claramente política ou ativista ser engolida por estes formatos de mesclagem, acabando por se diluir nos resultados obtidos. Desta forma, festejar-se a si mesmo como ativista, coletivo ou praticante da transversalidade não basta para produzir práticas ativistas, coletivas ou transversais. No seu pior, estes termos serviriam apenas para definir um vago estilo rebelde ou ‘da hora’, um hype passageiro e indevido.
O segundo risco, associado ao primeiro, é a cooptação desta forma potencialmente libertária e crítica pela mídia e pelas forças de produção, que se apropriam do nome e do formato coletivo de arte, transformando sua força crítica em estilo ou atitude associados à mercadoria .
É aqui que quero contribuir com a discussão, adicionando uma questão às considerações que Ricardo faz a partir deste ponto em seu texto, quando o autor reflete sobre a pressão das forças de produção capitalistas, particularmente na sua forma publicitária. Além de concordar em termos gerais com a hipótese de Rosas – a falta de clareza nas propostas, a falta de uma pauta ou agenda claras coloca os coletivos em uma posição vulnerável de fácil cooptação – acho que uma olhada sobre nossa posição dentro do sistema de produção e circulação de arte ajudará a refletir sobre os riscos apontados pelo autor.
Vou tentar esboçar um modelo que represente o que eu vejo à minha volta no mundo da arte. Tentei separar três jogadores: o pagador, o curador e o artista. Gostaria de poder oferecer mais embasamento acadêmico. Tenho certeza que tudo o que escrevo aqui está melhor articulado alhures, particularmente entre aqueles que pensam o trabalho no capitalismo de hoje. Sobre a condição específica do trabalho artístico, recomendo muito o livro One place after another: site-specific art and locationalidentity , de autoria de Miwon Kwon . Apesar de tratar mais genericamente das atribulações da arte específica ao lugar [site-specific], as páginas 46 a 51 são iluminadoras na definição da recomercialização das formas contemporâneas de prática artística ditas nômades.
Meu pequeno modelo, detalhado a seguir, apresenta o artista enfraquecido frente ao pagador (as instituições da arte - as galerias, museus e centros culturais) e que estas instituições encontram-se em posição de força desproporcional na determinação das políticas culturais e artísticas, usando o curador como operador das novas relações de trabalho.
O nômade como turista do capital
Inicio com uma operação típica dos tempos recentes:
Quando uma empresa é privatizada, o novo dono - seja um capitalista, acionistas ou outra empresa - contratam uma gerência de escalão médio que realiza uma série de “reengenharizações” na estrutura da instituição. É esta gerência que reorganizará a produção, “enxugando a máquina” de modo a aumentar os lucros. Entre as operações típicas deste tipo de reestruturação, encontra-se o velho truque de despedir os empregados existentes e recontratá-los com menores salários. Um ponto crucial nesta simples operação são as novas condições em que o empregado é readmitido: o trabalhador é tratado como uma micro-empresa de quem se contratam serviços.
Isso quer dizer que todos os encargos trabalhistas (previdência, férias, décimo-terceiro, jornadas de trabalho claramente delimitadas, licenças, proteção sindical) passam a ser responsabilidade da empresa contratada, ou seja, do novo empregado. A flexibilização do trabalho, o fim das carreiras etc. são frases que resultam no cancelamento de direitos trabalhistas. Ao não ter que pagar estes encargos, a empresa vê desta forma um enorme capital liberado para investimentos e para aumento de lucros.
Esta fórmula simplificada encontra-se em ação, acredito, nos sistemas da arte contemporânea. Apesar de ainda persistir o artista pintor de quadros ou escultor de esculturas, a atenção do mercado de arte contemporânea volta-se para formatos mais, digamos, modernos. Ao não mais produzirmos objetos de arte que são circulados pelas galerias e museus, nós artistas tornamo-nos prestadores de serviços.
“Assim se obtiver êxito, ele ou ela [o artista] viajam constantemente como freelancer, percorrendo o mundo como convidado, turista, aventureiro, crítico temporário da casa, ou pseudo-etnógrafo, visitando cidades como São Paulo, Paris, Munique, Londres, Chicago, Seul, Nova Iorque, Amsterdã, Los Angeles e assim por diante .”
Este trecho define o artista contemporâneo de práticas mais nomádicas e menos presas ao estúdio, que engaja diferentes espaços na cidade ou na sociedade, mas esta definição se aplica com notável precisão a nosso trabalho como artistas coletivados.
Ora, este artista itinerante ou nômade, não mais preso ao estúdio, trabalha on-call (tipo disk-arte). Tipicamente, a instituição contrata o artista para atuar em um espaço por ela configurado (às vezes o artista se adianta e apresenta um projeto). O espaço é então visitado, vivenciado, explorado e pesquisado pelo artista, que a seguir organiza, através de reuniões com curadores, administradores, educadores e técnicos da instituição o evento que elaborou. A preparação pode ser longa e complexa, e a documentação desta preparação vai tomar vida própria no circuito do vídeo de arte, categoria “making of” – o que vai alertar outra instituição acerca da possibilidade de novo contrato para novo trabalho.
Se por um lado o trabalho realizado é único e freqüentemente específico ao lugar/comunidade/situação e eminentemente não-circulável, isso não impede nem dificulta a cooptação e mercantilização. Pois é a presença do artista que se torna um pré-requisito para a execução/apresentação da obra. Portanto, é o aspecto performático da presença – não a quantidade ou qualidade do trabalho – que se torna valiosa e é alugada. Esta é a nova mercadoria, esta sim circulável e comercializável. O artista presta um serviço basicamente gerencial, e, se for um artista engajado, com o valor agregado de ‘criticidade’. O valor da mercadoria/presença está agora associada às indústrias de serviços e de gerenciamento.
Para o artista crítico, o perigo da repetição de uma comissão, isto é, a repetição de um mesmo tipo de convite de atuação crítica, ainda que em contextos e lugares diferentes, é que
“a subversão a serviço das próprias convicções encontra fácil transição para o mundo da subversão de aluguel; ‘a crítica torna-se espetáculo’” .
Neste contexto, nós artistas somos, então, micro-empresas competindo entre nós por posições no mercado, e como tal procuramos construir uma griffe pessoal diferenciada, uma marca que nos destaque da massa . Perseguimos o aval de intelectuais, a atenção da imprensa, enfim, construímos um nome-marca que tenha prestígio no mercado e corrência nos circuitos decisórios, de modo que pesem no momento da apresentação de um projeto (ou então que sejam mobilizáveis em áreas como a propaganda, arquitetura ou ilustração). Procuramos atrair a atenção da face visível do pagador, os burocratas do marketing de instituições através de projetos de curta duração, não-vinculativos, em que oferecemos nossos serviços de arte. O burocrata analisa o peso do nome e os ganhos de prestígio que o projeto pode oferecer, muitas vezes vinculados a estratégias de marketing já construídas. Assim, projetos “culturais”, “educativos”, de “cidadania” são rótulos de interesse institucional aos quais nos ajustamos, tentando contrabandear trabalho que julgamos mais significativo.
O burocrata controlador do orçamento freqüentemente terceiriza a gerência do evento cultural para a figura do curador. Apesar desta palavra alcançar a reflexão crítica, particularmente dentro das universidades, e de incluir todo um corpo importante, útil e essencialmente aliado de pensamento, este termo veio, acredito, a denominar um tipo de serviço que tento detalhar a seguir.
Em termos mais amplos, a curadoria pode entendida como a gerência média que media as condições impostas pelo patrocinador ou realizador, os serviços do artista-marca e suas próprias idéias. Assim como o gerente da empresa privatizada do texto acima, o curador contrata os serviços de artistas autônomos, freqüentemente tomando trabalhos individuais desvinculados de suas obras, assumindo uma espécie de autoria gerencial, onde a combinação ou encadeamento original de obras afirma um ponto teórico ou pessoal.
Não se trata aqui de atacar indivíduos, mas sim notar como se articulam algumas forças dentro do mercado de arte. Quem atua na área artísticas conhece os dilemas de pessoas críticas e sérias que tentam negociar a pressão institucional contra o conteúdo crítico que aparece sob diversas formas: seja em sua expressão maior – número de visitantes – seja em suas expressões menores - prazos e valores, a publicação ou não catálogo, direitos de uso e propriedade de peças, expectativas do patrocinador etc.
Também não estou sugerindo que os artistas lutem por uma carreira pública junto ao Estado ou vínculos permanentes com a instituição privada. Quis apenas indicar a posição de fraqueza em que se encontra o artista contemporâneo dentro deste modelo, como parte de um imenso pool de mão-de-obra barata, abundante e em competição interna pelas poucas posições oferecidas. O dinheiro que recompensa nosso trabalho nos chega tipicamente através deste modelo, determinando muitas de nossas práticas, e – crucialmente – posicionando os coletivos numa encruzilhada.
Os coletivos ante o dilema da transformação ou inserção
Dentro da variedade de temas e práticas dos coletivos, eu dou valor especial àquelas manifestações que procuram romper com o modelo que esbocei rapidamente acima. Ou seja, no seu melhor, os coletivos radicalizam em direção oposta à do mercado de artistas-griffe em competição: os coletivos criam redes horizontais de relacionamento e de circulação de informação e trabalho, assumem para si a curadoria ou escolhem eles mesmos os curadores de suas atividades, criam e trabalham espaços fora do circuito de arte.
Desta forma, pudemos e podemos obter condições de trabalho e de autonomia que o Banco do Brasil, Itáu, Tim, SESC ou Petrobrás jamais poderiam nos oferecer – como é o caso do Prestes Maia, por exemplo. Acredito que esta (re)apropriação de tarefas e prerrogativas de nós alienadas é responsável por grande parte do entusiasmo, originalidade e energia que alimenta o trabalho dos coletivos.
É aqui que gostaria de reencontrar o texto de Ricardo com uma frase dita certa vez por Daniel Lima: o fato de realizarmos trabalho juntos não basta para singularizar a produção dos coletivos.
Como passar um elefante por baixo da porta?
De fato, o formato de trabalho não-hierárquico foi já parcialmente assumido pelo capitalismo há algum tempo, chegando a experiências como a abolição das mesas fixas no escritório, a organização por projetos e não por cargos hierárquicos etc. Seria temerário afirmar sem mais que foi a produção capitalista que gerou a vontade de formar coletivos de arte ou que apenas replicamos modos de produção corporativas. Mas não é incorreto afirmar que a produção capitalista tem interesse em qualquer forma de associação produtiva que aumente a acumulação.
Em momentos de otimismo penso que a experiência dos coletivos tende a ser refratária à cooptação, e que é possível, se não impedir a cooptação, pelo menos criar um intervalo ou delay onde seja possível atuar livremente. Mas isso só pode acontecer se, como alerta Ricardo, aprofundarmos as questões envolvidas no trabalho dos coletivos de modo que o elemento resistência e seus frutos não sejam perdidos na festa ou na cordialidade.
Ou seja, eu acho que permitir a cooptação deste laboratório de práticas artísticas que é a experiência dos coletivos, onde procuramos nos reencontrar como produtores de nosso próprio trabalho, onde procuramos nos reinscrever no universo da produção artística, é reforçar ainda mais nossa condição de fragilidade ante os agentes do mercado e cair repetidamente na pobreza de produção artística, crítica e financeira.
Para concluir, relembro a resposta da anedota que o título deste artigo traz, que é bem conhecida: para passar um elefante por baixo da porta, coloque-o num envelope e empurre-o pelo vão. Mas a segunda parte da anedota é talvez mais relevante para o nosso contexto: como impedir que o elefante dentro do envelope passe por baixo da porta? R: faça um nózinho no rabo.
Se os coletivos são o elefante frente à porta da cooptação, o nózinho é a reflexão crítica.
Este texto foi escrito estimulado pelo texto de autoria de Ricardo Rosas, Hibridismo coletivo no Brasil: tranversalidade ou cooptação? Como contribuição à discussão trazida pelo autor, procuro, na minha condição de artista, adicionar uma reflexão sobre a posição dos artistas na cadeia produtiva da arte, com o objetivo de refletir sobre as forças e fragilidade dos coletivos de arte.
Um passado crítico e engajado
O estimulante texto de Ricardo Rosas traz alguns elementos para a compreensão do recente surto de coletivos de artistas no Brasil. Logo ao início de seu texto, Rosas faz um breve mas útil apanhado histórico das práticas coletivas, apontando experiências que legaram diversos caminhos para a atualidade. Uma inflexão crucial que Ricardo sublinha é a oposição dos coletivos à arte pública. É a partir desta oposição que muitas das características que hoje atribuímos aos coletivos se delinearam. Como escreve Ricardo, temos, entre outras características: “a espontaneidade, diálogo com o local, quebra do protocolo ‘sério’ da arte convencional, participação do público, temporalidade volátil, ênfase nas sensações e interpretação”. Mais adiante no texto, o autor amplia o âmbito das implicações críticas destas práticas: “uma atitude crítica não apenas com o meio artístico institucionalizado, mas igualmente com os critérios de valor cultural que se atribui à arte ou dita ‘o que é arte’, bem como sua comercialização”.
A segunda parte do texto observa mais atentamente os coletivos como se apresentam hoje, particularmente frente a pressão da publicidade, que anseia por transportar o hype da arte para suas utopias/mercadoria. A questão mais central aqui parece partir da variedade temática e de ações dos coletivos, onde Ricardo detecta dois riscos.
Minha interpretação dos riscos por ele apontados é que eles são estruturais (isto é, inerentes aos formatos que os coletivos têm adotado). Para mim, as formas abertas de ação, redes fluídas recombinantes, em suas diversas manifestações, constituem tanto a maior força quanto a maior fraqueza dos coletivos. O risco que se corre seria de ter uma ação mais claramente política ou ativista ser engolida por estes formatos de mesclagem, acabando por se diluir nos resultados obtidos. Desta forma, festejar-se a si mesmo como ativista, coletivo ou praticante da transversalidade não basta para produzir práticas ativistas, coletivas ou transversais. No seu pior, estes termos serviriam apenas para definir um vago estilo rebelde ou ‘da hora’, um hype passageiro e indevido.
O segundo risco, associado ao primeiro, é a cooptação desta forma potencialmente libertária e crítica pela mídia e pelas forças de produção, que se apropriam do nome e do formato coletivo de arte, transformando sua força crítica em estilo ou atitude associados à mercadoria .
É aqui que quero contribuir com a discussão, adicionando uma questão às considerações que Ricardo faz a partir deste ponto em seu texto, quando o autor reflete sobre a pressão das forças de produção capitalistas, particularmente na sua forma publicitária. Além de concordar em termos gerais com a hipótese de Rosas – a falta de clareza nas propostas, a falta de uma pauta ou agenda claras coloca os coletivos em uma posição vulnerável de fácil cooptação – acho que uma olhada sobre nossa posição dentro do sistema de produção e circulação de arte ajudará a refletir sobre os riscos apontados pelo autor.
Vou tentar esboçar um modelo que represente o que eu vejo à minha volta no mundo da arte. Tentei separar três jogadores: o pagador, o curador e o artista. Gostaria de poder oferecer mais embasamento acadêmico. Tenho certeza que tudo o que escrevo aqui está melhor articulado alhures, particularmente entre aqueles que pensam o trabalho no capitalismo de hoje. Sobre a condição específica do trabalho artístico, recomendo muito o livro One place after another: site-specific art and locationalidentity , de autoria de Miwon Kwon . Apesar de tratar mais genericamente das atribulações da arte específica ao lugar [site-specific], as páginas 46 a 51 são iluminadoras na definição da recomercialização das formas contemporâneas de prática artística ditas nômades.
Meu pequeno modelo, detalhado a seguir, apresenta o artista enfraquecido frente ao pagador (as instituições da arte - as galerias, museus e centros culturais) e que estas instituições encontram-se em posição de força desproporcional na determinação das políticas culturais e artísticas, usando o curador como operador das novas relações de trabalho.
O nômade como turista do capital
Inicio com uma operação típica dos tempos recentes:
Quando uma empresa é privatizada, o novo dono - seja um capitalista, acionistas ou outra empresa - contratam uma gerência de escalão médio que realiza uma série de “reengenharizações” na estrutura da instituição. É esta gerência que reorganizará a produção, “enxugando a máquina” de modo a aumentar os lucros. Entre as operações típicas deste tipo de reestruturação, encontra-se o velho truque de despedir os empregados existentes e recontratá-los com menores salários. Um ponto crucial nesta simples operação são as novas condições em que o empregado é readmitido: o trabalhador é tratado como uma micro-empresa de quem se contratam serviços.
Isso quer dizer que todos os encargos trabalhistas (previdência, férias, décimo-terceiro, jornadas de trabalho claramente delimitadas, licenças, proteção sindical) passam a ser responsabilidade da empresa contratada, ou seja, do novo empregado. A flexibilização do trabalho, o fim das carreiras etc. são frases que resultam no cancelamento de direitos trabalhistas. Ao não ter que pagar estes encargos, a empresa vê desta forma um enorme capital liberado para investimentos e para aumento de lucros.
Esta fórmula simplificada encontra-se em ação, acredito, nos sistemas da arte contemporânea. Apesar de ainda persistir o artista pintor de quadros ou escultor de esculturas, a atenção do mercado de arte contemporânea volta-se para formatos mais, digamos, modernos. Ao não mais produzirmos objetos de arte que são circulados pelas galerias e museus, nós artistas tornamo-nos prestadores de serviços.
“Assim se obtiver êxito, ele ou ela [o artista] viajam constantemente como freelancer, percorrendo o mundo como convidado, turista, aventureiro, crítico temporário da casa, ou pseudo-etnógrafo, visitando cidades como São Paulo, Paris, Munique, Londres, Chicago, Seul, Nova Iorque, Amsterdã, Los Angeles e assim por diante .”
Este trecho define o artista contemporâneo de práticas mais nomádicas e menos presas ao estúdio, que engaja diferentes espaços na cidade ou na sociedade, mas esta definição se aplica com notável precisão a nosso trabalho como artistas coletivados.
Ora, este artista itinerante ou nômade, não mais preso ao estúdio, trabalha on-call (tipo disk-arte). Tipicamente, a instituição contrata o artista para atuar em um espaço por ela configurado (às vezes o artista se adianta e apresenta um projeto). O espaço é então visitado, vivenciado, explorado e pesquisado pelo artista, que a seguir organiza, através de reuniões com curadores, administradores, educadores e técnicos da instituição o evento que elaborou. A preparação pode ser longa e complexa, e a documentação desta preparação vai tomar vida própria no circuito do vídeo de arte, categoria “making of” – o que vai alertar outra instituição acerca da possibilidade de novo contrato para novo trabalho.
Se por um lado o trabalho realizado é único e freqüentemente específico ao lugar/comunidade/situação e eminentemente não-circulável, isso não impede nem dificulta a cooptação e mercantilização. Pois é a presença do artista que se torna um pré-requisito para a execução/apresentação da obra. Portanto, é o aspecto performático da presença – não a quantidade ou qualidade do trabalho – que se torna valiosa e é alugada. Esta é a nova mercadoria, esta sim circulável e comercializável. O artista presta um serviço basicamente gerencial, e, se for um artista engajado, com o valor agregado de ‘criticidade’. O valor da mercadoria/presença está agora associada às indústrias de serviços e de gerenciamento.
Para o artista crítico, o perigo da repetição de uma comissão, isto é, a repetição de um mesmo tipo de convite de atuação crítica, ainda que em contextos e lugares diferentes, é que
“a subversão a serviço das próprias convicções encontra fácil transição para o mundo da subversão de aluguel; ‘a crítica torna-se espetáculo’” .
Neste contexto, nós artistas somos, então, micro-empresas competindo entre nós por posições no mercado, e como tal procuramos construir uma griffe pessoal diferenciada, uma marca que nos destaque da massa . Perseguimos o aval de intelectuais, a atenção da imprensa, enfim, construímos um nome-marca que tenha prestígio no mercado e corrência nos circuitos decisórios, de modo que pesem no momento da apresentação de um projeto (ou então que sejam mobilizáveis em áreas como a propaganda, arquitetura ou ilustração). Procuramos atrair a atenção da face visível do pagador, os burocratas do marketing de instituições através de projetos de curta duração, não-vinculativos, em que oferecemos nossos serviços de arte. O burocrata analisa o peso do nome e os ganhos de prestígio que o projeto pode oferecer, muitas vezes vinculados a estratégias de marketing já construídas. Assim, projetos “culturais”, “educativos”, de “cidadania” são rótulos de interesse institucional aos quais nos ajustamos, tentando contrabandear trabalho que julgamos mais significativo.
O burocrata controlador do orçamento freqüentemente terceiriza a gerência do evento cultural para a figura do curador. Apesar desta palavra alcançar a reflexão crítica, particularmente dentro das universidades, e de incluir todo um corpo importante, útil e essencialmente aliado de pensamento, este termo veio, acredito, a denominar um tipo de serviço que tento detalhar a seguir.
Em termos mais amplos, a curadoria pode entendida como a gerência média que media as condições impostas pelo patrocinador ou realizador, os serviços do artista-marca e suas próprias idéias. Assim como o gerente da empresa privatizada do texto acima, o curador contrata os serviços de artistas autônomos, freqüentemente tomando trabalhos individuais desvinculados de suas obras, assumindo uma espécie de autoria gerencial, onde a combinação ou encadeamento original de obras afirma um ponto teórico ou pessoal.
Não se trata aqui de atacar indivíduos, mas sim notar como se articulam algumas forças dentro do mercado de arte. Quem atua na área artísticas conhece os dilemas de pessoas críticas e sérias que tentam negociar a pressão institucional contra o conteúdo crítico que aparece sob diversas formas: seja em sua expressão maior – número de visitantes – seja em suas expressões menores - prazos e valores, a publicação ou não catálogo, direitos de uso e propriedade de peças, expectativas do patrocinador etc.
Também não estou sugerindo que os artistas lutem por uma carreira pública junto ao Estado ou vínculos permanentes com a instituição privada. Quis apenas indicar a posição de fraqueza em que se encontra o artista contemporâneo dentro deste modelo, como parte de um imenso pool de mão-de-obra barata, abundante e em competição interna pelas poucas posições oferecidas. O dinheiro que recompensa nosso trabalho nos chega tipicamente através deste modelo, determinando muitas de nossas práticas, e – crucialmente – posicionando os coletivos numa encruzilhada.
Os coletivos ante o dilema da transformação ou inserção
Dentro da variedade de temas e práticas dos coletivos, eu dou valor especial àquelas manifestações que procuram romper com o modelo que esbocei rapidamente acima. Ou seja, no seu melhor, os coletivos radicalizam em direção oposta à do mercado de artistas-griffe em competição: os coletivos criam redes horizontais de relacionamento e de circulação de informação e trabalho, assumem para si a curadoria ou escolhem eles mesmos os curadores de suas atividades, criam e trabalham espaços fora do circuito de arte.
Desta forma, pudemos e podemos obter condições de trabalho e de autonomia que o Banco do Brasil, Itáu, Tim, SESC ou Petrobrás jamais poderiam nos oferecer – como é o caso do Prestes Maia, por exemplo. Acredito que esta (re)apropriação de tarefas e prerrogativas de nós alienadas é responsável por grande parte do entusiasmo, originalidade e energia que alimenta o trabalho dos coletivos.
É aqui que gostaria de reencontrar o texto de Ricardo com uma frase dita certa vez por Daniel Lima: o fato de realizarmos trabalho juntos não basta para singularizar a produção dos coletivos.
Como passar um elefante por baixo da porta?
De fato, o formato de trabalho não-hierárquico foi já parcialmente assumido pelo capitalismo há algum tempo, chegando a experiências como a abolição das mesas fixas no escritório, a organização por projetos e não por cargos hierárquicos etc. Seria temerário afirmar sem mais que foi a produção capitalista que gerou a vontade de formar coletivos de arte ou que apenas replicamos modos de produção corporativas. Mas não é incorreto afirmar que a produção capitalista tem interesse em qualquer forma de associação produtiva que aumente a acumulação.
Em momentos de otimismo penso que a experiência dos coletivos tende a ser refratária à cooptação, e que é possível, se não impedir a cooptação, pelo menos criar um intervalo ou delay onde seja possível atuar livremente. Mas isso só pode acontecer se, como alerta Ricardo, aprofundarmos as questões envolvidas no trabalho dos coletivos de modo que o elemento resistência e seus frutos não sejam perdidos na festa ou na cordialidade.
Ou seja, eu acho que permitir a cooptação deste laboratório de práticas artísticas que é a experiência dos coletivos, onde procuramos nos reencontrar como produtores de nosso próprio trabalho, onde procuramos nos reinscrever no universo da produção artística, é reforçar ainda mais nossa condição de fragilidade ante os agentes do mercado e cair repetidamente na pobreza de produção artística, crítica e financeira.
Para concluir, relembro a resposta da anedota que o título deste artigo traz, que é bem conhecida: para passar um elefante por baixo da porta, coloque-o num envelope e empurre-o pelo vão. Mas a segunda parte da anedota é talvez mais relevante para o nosso contexto: como impedir que o elefante dentro do envelope passe por baixo da porta? R: faça um nózinho no rabo.
Se os coletivos são o elefante frente à porta da cooptação, o nózinho é a reflexão crítica.
Projeto de intervenção
Sáfaro Divulga Zagaia
"Caros amigos, parceiros e simpatizantes
A Zagaia tem o prazer de convidar a todos para nosso primeiro seminário realizado em conjunto com o grupo teatral Folias: “Labirintos e Trincheiras: Onde a esquerda encontra a estética” (segue o cartaz abaixo). Na abertura o cartunista Laerte, a atriz e diretora Maria Alice Vergueiro e a professora Iná Camargo Costa discutirão a seguinte questão: “O humor é de esquerda?”
Convidamos também para a Festa de Lançamento de nossa Segunda Edição que estará no ar no dia 10/11″
Dia 10/11 – 20h Festa de lançamento da 2a edição da Zagaia com Roda Zagaia
Onde: C.E.M. – Clube Etílico Musical (Bar da Meirinha). Rua Fradique Coutinho, 1048
Contamos com a presença de todos!"
Mais informações: http://blog.zagaiaemrevista.com.br/
http://www.zagaiaemrevista.com.br/
deslocar-se na cidade mediante um algoritmo pré-definido.
operar uma insuportável abstração. do tamanho de uma bomba.
deriva programada.
causar um tilt entre cidade e imagem, entre um muro e o número.
uma maior quantidade de variáveis no algoritmo.
a impossibilidade do movimento mediante a ingestão exagerada de fórmulas abstratas.
revelar poderes.
DUAS ALEGORIAS DE BAUDELAIRE
OS PROJETOS
Sozinho, passeando em um grande parque, ele dizia
para si mesmo: “Como ela ficaria bela em seu vestido real, complicado e
faustoso, descendo, através da atmosfera de uma bela tarde, os degraus de
mármore de um palácio diante de grandes gramados e laguinhos! Porque ela tem,
naturalmente, o ar de uma princesa.”
Passando, mais tarde, por uma rua, ele parou diante
de uma loja de gravuras e encontrando numa pasta uma estampa representando uma
paisagem tropical. se disse: “Não! Não é num palácio que eu desejaria possuir
sua querida vida. Nós não estaríamos em casa. Porque em suas paredes
incrustadas de ouro não haveria lugar para pendurar o seu retrato; naquelas
solenes galerias não existiriam recantos para nossa intimidade. Decididamente,
é lá que é preciso ficar para cultivar o sonho de minha vida.”E, analisando com os olhos todos os detalhes da gravura, ele continuou, mentalmente: “À beira-mar, uma bela cabana de madeira, cercada por todas essas árvores bizarras e luminosas das quais me esqueço os nomes..., na atmosfera um odor inebriante, indefinível.., na cabana, um perfume de rosas e almíscar, Mais longe, atrás de nosso pequeno domínio, as pontas de mastros dos botes oscilando com as ondas.,, em volta de nós, além do quarto iluminado por uma luz rósea tamisada pelas cortinas, decoradas com esteiras frescas e flores capitosas com algumas cadeiras de rococó português, de uma madeira pesada, tenebrosa (onde ela repousaria, calmamente, refrescando-se e fumando um tabaco levemente opiáceo); além do terraço, a gritaria de pássaros embriagados pelas luzes e a tagarelagem das negrinhas.., e à noite, para servir de acompanhamento a meus sonhos, o canto lamentoso de árvores musicais, de melancólicas casuarinas. Sim, na verdade, é bem este cenário lá que eu procurava. Que faria eu com um palácio?”
E, mais adiante, como ele seguisse por uma grande
avenida, vislumbrou um albergue asseado onde, de uma janela alegrada por
cortinas indianas multicores, penduravam-se duas cabeças sorridentes. E, logo a
seguir: “É preciso”, disse para si, “que meu pensamento seja um grande
vagabundo para ir procurar tão longe o que está perto de mim. O prazer e a
felicidade estão no primeiro albergue encontrado, no albergue do acaso, tão
fecundo e voluptuoso. Uma lareira, faianças vistosas, um jantar passável, um
vinho rude e um leito muito largo com lençóis um pouco ásperos, mas frescos; o
que há de melhor?”
E voltando para casa sozinho àquela hora onde os conselhos da sabedoria não são mais abafados pelo burburinho da vida exterior, ele se disse: “Tive hoje, em sonho, três domicílios onde encontrei prazeres iguais. Por que obrigar meu corpo a mudar de lugar se minha alma viaja tão rapidamente? De que serve a execução de projetos, posto que o projeto, em si, é já um gozo suficiente?"
E voltando para casa sozinho àquela hora onde os conselhos da sabedoria não são mais abafados pelo burburinho da vida exterior, ele se disse: “Tive hoje, em sonho, três domicílios onde encontrei prazeres iguais. Por que obrigar meu corpo a mudar de lugar se minha alma viaja tão rapidamente? De que serve a execução de projetos, posto que o projeto, em si, é já um gozo suficiente?"
O MAU VIDRACEIRO
Tal como alguém que, temendo encontrar com seu
porteiro uma novidade triste, perambula, covardemente, diante da porta sem
ousar entrar, ou, então, que conserva por quinze dias uma carta sem abrir, ou o
que só se resigna, após seis meses, a tomar uma decisão que já era necessária
há um ano, se sente, bruscamente, precipitado a agir por uma força irresistível
como a flecha em um arco distendido. O moralista e o médico, que pretendem
saber tudo, não podem explicar de onde vem tão subitamente uma tão louca
energia a essas almas preguiçosas e voluptuosas e, como incapazes de realizar
as coisas mais simples e as mais necessárias, acham em certo minuto uma luxuosa
coragem para executar os atos mais absurdos e, freqüentemente, mais perigosos.
Um de meus amigos, o mais impulsivo sonhador que já existiu, pôs uma vez fogo em uma floresta para ver, dizia ele, se a fogo alastrava-se tão facilmente coma se afirma geralmente. Dez vezes seguidas a experiência falhou, mas, na décima primeira, resultou um sucesso.
Um outro acendeu um charuto ao lado de um barril de
pólvora, “para ver, para saber, para tentar o destino, para se constranger a
fazer prova de energia, para bancar a jogador, para conhecer os prazeres da
ansiedade, por nada, por capricho, por ociosidade”.
É uma espécie de energia que salta do tédio e do devaneio; e aqueles que têm tais manifestações são, em geral, como eu disse, os mais indolentes e os mais sonhadores dos seres.
Um outro tímido, desses que baixam os olhos diante do olhar dos outros homens, a tal ponto que precisa reunir toda a força de sua pobre vontade para entrar num café ou passar na frente do guichê de um teatro onde os controladores lhe parecem investidos da majestade de Minas, de Éaco e de Radamante, saltará, bruscamente, ao pescoço de um velho que passa a seu lado e o beijará com entusiasmo diante da multidão atônita.
Por quê? Porque... essa fisionomia era-lhe irresistivelmente simpática? Talvez; porém é mais legítimo supor que ele mesmo não saiba por quê.
Eu fui mais de uma vez vítima dessas crises e desses surtos que nos autorizam a crer que demônios maliciosos deslizam em nós e nos fazem executar, sem nosso conhecimento, suas mais absurdas vontades.
Uma manhã levantei-me aborrecido, triste, fatigado
de ociosidade, preguiçoso e disposto, parecia-me, a fazer qualquer coisa de
grande, uma ação de brilho... e, então, abri a janela!
(Observem, peço-lhes, que o espírito de mistificação que, em algumas pessoas, não é o resultado de um trabalho, de uma combinação, mas de uma inspiração fortuita, participa muito, quanto mais não seja pelo ardor do desejo, desse humor, histérico segundo os médicos, satânico segundo aqueles que pensam um pouco melhor que os médicos, que nos impele, sem resistência, para uma porção de ações perigosas ou inconvenientes.)
A primeira pessoa que percebi na rua foi um vidraceiro, cujo grito agudo, desafinado, subia até mim, atravessando a atmosfera parisiense, pesada e suja. Ser-me-ia, além disso, impossível dizer por que eu tive a atenção chamada para esse pobre homem. Tomei-me de uma raiva tão súbita quanto despótica.
“Hei! Hei!”, gritei, para que subisse. Enquanto eu
refletia, não sem alguma alegria, que o quarto ficando no sexto andar e sendo a
escada muito estreita, o homem teria algum trabalho na sua ascensão e,
certamente, engataria em alguns lugares sua frágil mercadoria.
Enfim ele apareceu e eu lhe disse: “Como, o senhor não tem vidro de cores? Vidros rosas, vermelhos, azuis, vidros mágicos, vidros do paraíso? Impudente é o que o senhor é! E o senhor ousa passear por quarteirões pobres e não tem nem mesmo vidros que façam ver que a vida é bela!” E eu o empurrei em direção à escada, na qual ele tropeçou, resmungando.
Aproximei-me do balcão e tomei um pequeno vaso de flores, e quando o homem reapareceu ao abrir a porta eu deixei cair, perpendicularmente, meu engenho de guerra sobre o rebordo posterior de seus ganchos, e, como o choque o derrubou, ele acabou de quebrar sob seu dorso toda a sua pobre fortuna ambulatória que resultou na fragorosa barulheira de um palácio de cristal destruído por um raio. E, ébrio de minha loucura, gritei para ele, furiosamente: “A vida é bela! A vida é bela!”
Essas brincadeiras nervosas não são sem perigo e pode-se, às vezes, pagá-las caro. Mas o que importa a eternidade da danação a quem achou em um segundo o infinito da alegria.
MACUNAÍMA NO CAVEIRÃO DO NASCIMENTO
Por Silvio Carneiro
É possível
que, de uns tempos pra cá, a figura do herói brasileiro esteja sofrendo algumas
mudanças. Paralelamente, o sucesso de filmes que investigam o universo paralelo
das favelas e da miséria da nação aos poucos se apropria não de um modo de ver
o outro, mas de narrar a história deste outro. Começou com o olhar inocente e
infantil de Central
do Brasil, cresceu e tomou forma no bang-bang à italiana e tarantinesco da Cidade de Deus e agora, o
imaginário coletivo entra na onda da Tropa de Elite. Neste ponto,
o olhar e a letra sobre a miséria configuram uma nova ordem de discurso que se
identifica na voz de um homem contra o "sistema". É a narrativa do
herói, que por mais distante e polêmico que seja, cala a socos e pontapés
qualquer alternativa política que não seja a do bom moço. A luta do bem contra
o mal está posta. Resta o preto e o branco do pensamento maniqueísta, coloração
monótona que encanta os espectadores pela ladainha da luta contra o sistema,
espectador mantido desperto graças aos tiros e rock pauleira que a estratégia do
choque sustenta. Nesta ordem em que a guerra é o que mantém vivo o
protagonista-narrador, Macunaíma é o primeiro "a ser passado",
torturado no patrimônio maior de Padilha: o elogio à polícia justa.
Quem manda ser vagabundo e preguiçoso? Viver de cacau, fugindo das
saúvas - símbolo do trabalho de que Macunaíma tanto quer se distanciar –
consumindo lagostas, cunhãs ou produtos industrializados da Rua dos Ingleses.
Maneira irônica de se apresentar um herói brasileiro em fins da década de 1920,
deixando em dúvida se o projeto de Mário de Andrade parte de um campo
conservador do Brasil-paulista, ou de um elogio do Brasil que insiste em não
ser moderno. Seu herói representa o povo das terras distantes que visitou.
Negro, branco e índio têm suas representações entre o adulto, o porvir e o
velho, respectivamente. Malandro por excelência, "o herói sem nenhum
caráter" representa a astúcia amoral de quem não deixa de querer ficar por
cima na hierarquia social, contrastando com o fim moribundo em terras de
origens. Através do herói estão cifradas tanto a lenda de que "aqui tudo
se colhe", quanto a do povo que sempre se "arranja no jeitinho".
Eurocêntrico ou tropical, Macunaíma ainda preserva a ambiguidade que prepara um
discurso aberto de um país que ainda não encerrou sua história.
Herói datado
de um país que não existe mais? É bem provável que sim; sobretudo, se o ponto
de partida de sua interpretação for localizado historicamente: o país dos anos
de Macunaíma é bem diverso dos labirintos do Secretário Nascimento. Mas se
analisarmos pela ordem das razões do discurso macunaímico é bem provável que
algo se preserve para pensarmos a instância nacional. Macunaíma já esteve bem
próximo do que seria o jeitinho
brasileiro de resolver a vida. Seu maior embate se daria com o
burguês-paulista-ameríndio-italiano Venceslau Pietro Petra, morto por seu
próprio capricho, no caldeirão que a Caipora preparava suas vítimas. Assim como
o Ulisses homérico, Macunaíma jogava astuciosamente com seu adversário. Não há um
enfrentamento, apenas pequenas peças pregadas pelo herói que busca, assim,
recuperar sua muiraquitã. Se em alguma hora, o herói invade a casa de seu
adversário, logo trata de esconder-se, fugir, blefar – modos de se esquivar
daquilo que projeta como destino.
O Nascimento
de Tropa de Elite opta por um caminho diverso... Não se trata de adotar estratégias
esguias, mas de estabelecer táticas eficientes para se ganhar espaço. Aqui, o
único prazer é a guerra e a aniquilação a sangue frio dos adversários.
Por que a mudança do roteiro? A resposta de que o Brasil mudou – e, com
ele, seus heróis – é ainda insuficiente para se entender o sentido eleito desta
mudança. Por que o substituto eleito de Macunaíma é Nascimento, uma vez que são
tão distintos?
***
A comparação
é fértil, mas gostaria de atentar alguns pontos sobre a natureza da personagem
literária do herói, compreendendo o que se deixa para trás quando Macunaíma
entra no Caveirão do Nascimento (estranho nome para um assassino). É provável que o meliante
jamais fosse compreendido pelo exército de Nascimento. São duas gramáticas
distintas, quase estrangeiras entre si. Enquanto o primeiro procura catalogar
as espécies de um Brasil em aberto, o capitão articula o vocabulário do estado
sitiado. "Não gostou? Pede pra sair, fanfarrão!" – um dos motes
sádicos que mais circulam neste imaginário. Na contrapartida, é bem provável
que Macunaíma responderia com longas reticências: "Ai! Que
preguiça...". Ficamos assim: "Ame-o ou deixe-o!" contra o
"Deixe estar...". Seguir esta trilha nos leva a explorar uma
característica muito apropriada do herói enquanto voz de um universo
discursivo. Através dele, um mundo passa a ser organizado.
Sob este
prisma, Macunaíma seria reprovado. Aparentemente, nada mais contrário à ordem
do que este herói. Ao primeiro olhar, sua narrativa está longe de impor uma
ordem: mitos europeus se misturam com lendas nativas; por vezes, aquilo que
seria o fio condutor, a busca do muiraquitã na luta contra Piaimã, é
entrecortado por aventuras cujo sentido parece não aderir aos intentos do
herói. Diferentemente ocorre em Tropa
de Elite, que, em suas duas edições, projeta missões que
devem ser cumpridas – o que orienta a narrativa heróica: seja arranjar o
substituto do cansado Capitão Nascimento ou derrubar o "sistema".
Assim, a sequência deste filme procura organizar o nosso olhar, discernindo o
mundo civil do policial e, no interior deste, o policial incorruptível do
corrupto, o incompetente do competente, a polícia e a política. A objetividade
da câmera é implacável na sua capacidade de desenvolver categorias, mesmo que
desviada por recuos no tempo narrativo. Com este realismo categórico vem a
necessidade de estereótipos: o estudante classe média maconheiro, o policial
bonzinho, o capitão severo, o político corrupto, o político bonzinho (ainda que
faltem tipos sociais essenciais: a elite propriamente e os eternos invisíveis –
que servem mais como figurante e alvo de bala do que propriamente como alguém
portador de direitos e linguagem).
Contrário a
estereótipos, Macunaíma assume a todos: é o preguiçoso, o triunfante, o
derrotado moribundo, o branco que segue para a cidade grande, o homem com
cabeça de criança, o bicho-do-mato que se transforma em príncipe. Referências
de transformação, metamorfoses difíceis de acompanhar. Seria Gilda de Mello
quem procurou o que sustenta o discurso do livro como algo coeso. Não se trata
do fato de que a narrativa está centrada nas peripécias de um personagem –
posto que é metamorforseante. A unidade de Macunaíma também não está, para a
leitora, na circularidade quase odisséica do herói. A coesão se faz pelaforma estética, naquilo
que Mário de Andrade sempre preservou: a forma musical - traduzida em
literatura no Macunaíma. De maneira diversa à imagem, a arte musical fornece um território de
abstração pelo qual suas formas se entrelaçam. A ousadia de Mário de Andrade
está em compor uma obra que circule por entre formas rapsódicas, e que desvia a
criação artística para territórios que seguem além das dicotomias clássicas: Erudito versus Popular, Nacional versus Europeu, são oposições ultrapassadas nos episódios de Macunaíma.
E o autor
ultrapassa em dois sentidos: o nivelamento
estético, quando as formas estéticas ascendem para um nível
superior de arte culta; e odesnivelamento
estético, quando o movimento segue o sentido contrário
(Souza, 2003, pp. 20-21). Não se trata aqui, pois, de estilizar a produção
popular. Mário de Andrade estaria atento para o fato de que nas canções de roda
infantil estão expressas formas estéticas elaboradas. Ou seja, o que se
pretende aqui é uma dialética entre os níveis de produção artística capaz de
alcançar uma integração que não descarte do universo da linguagem nenhum
elemento. Algo neste sentido aparece em sua "Carta pras Icamiabas".
Ali, Macunaíma é capaz de falar com o populacho e com as ciências, de travar
debates com seres naturais e celestiais. E através da narrativa de sua
aventura, todos estes elementos ganham vida, conferindo ao outro um lugar na
ordem discursiva.
Movimento
que, insisto, não existe em nenhum momento em Tropa de Elite: os
estereótipos não dão conta de mostrar suas diferenças. Sob o olhar do Capitão
Nascimento o universo discursivo não permite as zonas de dúvida, senão as dele
próprio. Mesmo quando André, o policial "racional" e "do
bem", resolve se misturar com o universo paralelo dos civis, o herói já
antecipa ao espectador: "vai dar merda...", conforme repete
insistentemente Nascimento em diversos episódios. Aqui, aos poucos, se revela o
sentido do universo discursivo do novo herói: sua linguagem é a da guerra, sua
gramática é a estratégia de um general solitário prestes a perder a luta contra
"o sistema".
No universo
da imagem, a câmera também sustenta este universo bélico: uma luz verde-claro
que acompanha o ambiente de escritório, outra que sustenta a imagem noturna na
batalha da favela; um movimento de câmara que acompanha a ótica de Nascimento.
Dentre todos estes elementos, nada mais fechado do que o universo discursivo
apresentado pela estética de Padilha. Longe de algumas experiências feitas por
seu companheiro Marcos Prado, como Estamira, o olhar de Tropa de Elite é o da guerra, algo que ainda fica mais explícito no segundo filme,
quando Nascimento sai da cena do front e ocupa os escritórios da inteligência do Estado. Em ambos os casos,
embora com mudanças de cenário, o sentido discursivo ainda é o fechamento, a
definição, o juízo sobre as categorias e seus estereótipos. De modo diverso a
Macunaíma, há apenas um sentido estético, o nivelamento (com a
competência na captação de imagem), dispensando qualquer disposição dialética
de seus estereótipos. Há o enfrentamento da força das imagens, mas não há
movimento: apenas a monotonia discursiva do Nascimento. Peças estereotipadas
que fazem correr o sistema imóvel: definitivamente, o outro é o inimigo.
E Macunaíma não expressa a violência? Não há lutas, sangue e morte?
Venceslau Pietro Petra não seria o inimigo-outro a quem Macunaíma havia jurado
vingança? De fato, não podemos esquecer este lado. Mesmo o erotismo deste herói
sem nenhum caráter é, no episódio com a amada Ci, banhado de sangue no interior
da mata. Desleal com seus amigos, Macunaíma não ocupa o lugar do herói-santo –
é o "Grande Mau" (conforme Mário de Andrade traduz pela leitura do
folclore das tribos venezuelana e guianas descritas por Koch-Grünberg). Macunaíma
é, pois antes a passagem das ambiguidades, e não a síntese de um projeto de
Brasil. Antes de nossas conclusões comparativas com o herói Nascimento, vejamos
alguns aspectos desta ambiguidade macunaímica.
***
"Muita saúva e pouca saúde, os problemas do Brasil são", eis
um dístico que Macunaíma insiste. Aqui se apresenta o conflito macunaímico:
simbolicamente estão dispostos o trabalho das formigas e o estado natural a que
a doença procura nos limitar. Escapar deste paradoxo da formação é o sinal do
Brasil moderno projetado por Mário de Andrade. Desta dupla, Venceslau Pietro
Petra seria apenas o resultado, o Latino-europeu ganancioso, devorador de
gente, colecionador das riquezas e felicidade do país cujos males são o excesso
de saúvas e a falta de saúde. Argumento mais astucioso do que a saída fácil de
declarar guerra ao "sistema", seja lá o que isso significa.
De fato, é
considerável que a leitura de Macunaíma e sua vitória sobre Piaimã seja menos
triunfante do que é narrado. Mário de Andrade deixa aqui a marca de uma dúvida,
que permite o exercício de reflexão. Seu herói volta, embora restituído,
moribundo para Uiracoera. Paralelamente, não se pode dizer que teve uma vida de
rei na cidade, onde, impulsionado por seus desejos, perdia nos jogos de azar e do
amor. Conforme lembra Bosi, não há síntese possível na dinâmica desta obra: o
herói não encontra felicidade nem na mata, nem na cidade: "nem a cidade
representa uma saída para a selva, nem a selva para a cidade. O sentido é o impasse" (Bosi, 1988, p. 139) – e por isso mesmo, o destino final –
desolado, e não apoteótico - é a esfera celeste, quando Macunaíma transforma-se
em Ursa Maior.
Algo da
ordem do impasse ainda sustenta as reflexões do Capitão Nascimento - mas não do
secretário. Por isso, Tropa
de Elite 1 contém elementos mais interessantes do que sua
sequência. Nesta primeira versão, o herói ainda não se determina enquanto tal.
Naquele momento, várias foram as entrevistas em que Padilha insistiu em
desclassificar o heroísmo de Nascimento. Havia até então neste personagem algo
de ambíguo, na medida em que, em seu trabalho de formação, ele fazia e não
fazia parte do sistema, encarnando por vezes a voz desta gigantomaquia criada
socialmente. Ao mesmo tempo em que procura solucionar estratégias e, em alguma
medida, faz o que considera ser justo, não deixa de resolver sua ordem no
impulso da violência, sob a justificativa eterna de que estamos numa guerra. Na
ordem da ambiguidade, era interessante ver como a ideologia local se
aterrorizava com o Nascimento que, ao mesmo tempo, espanca os maconheiros da
classe média e os "aviõezinhos" da favela.
Em Tropa de Elite 2 esta ambiguidade do Nascimento se esvai. Agora é ele contra o sistema.
Padilha resolve assim responder a algumas críticas. Até mesmo, a classe média
sai um pouco satisfeita do filme, quando o filho do Nascimento procura aliviar
sua amiga que levava consigo algumas "trouxas" e é presa em
flagrante. Nada mais satisfatório para seu público. Nada mais agradável a este
mesmo público do que o espancamento catártico no político corrupto. Chuck Norris com falas e uma melhor interpretação, Nascimento não perdoa a quem sai
dos rigores da lei. Neste sentido, o segundo filme perde muito do que poderia
ser tecido a partir do primeiro. Recuo de Padilha diante do "sistema"?
Sistema que, aliás, nunca é definido, embora dito repetidamente o seu nome.
Conteúdo sem forma, o "sistema" torna-se uma estrutura móvel,
sustentada por uma ordem de estereótipos presentes em qualquer lugar, sobretudo
nos corredores do poder e da milícia, na família da classe média – embora nunca
nas decisões empresariais. Até se fala do dinheiro que sustenta o sistema, bem
no plano de sobrevôo final, com o discurso rigoroso de Nascimento pairando
sobre a Esplanada dos Ministérios finalizando na bandeira nacional –
recentemente atingida por um manifestante que lhe ateou fogo, enquanto
pronunciava um discurso confuso contra o "sistema" – mas a origem do
dinheiro apenas é insinuada.
Paranóias a
parte de um país que sofre, a falta de definição do sistema, acompanha o
subtítulo de Tropa
de Elite 2: "agora o inimigo é outro" –
nada mais coerente: depositar no outro o perigo é estratégia recorrente de quem
opta pela saída fácil de que o "sistema" é o adversário. Neste
sentido, vale tudo contra o outro, seja lá quem ele for. Qualquer estereótipo
do sistema deve ser destruído sistematicamente, aniquilado pelo único narrador
do filme: o ego justo, embora enfraquecido e cansado, do capitão Nascimento. Estratégia
bem diferente de Macunaíma, que carrega consigo o Grande Mau, que, em suas mentiras e
astúcias, foge dos adversários, e percorre o Brasil nesta fuga. Mário de
Andrade analisa o Brasil a partir deste personagem nômade, que jamais aceitou o
sedentarismo da cadeira pública de uma secretaria para manifestar o que é, o
que não é e o que poderia ser o Brasil. Contrariamente ao impasse de Macunaíma,
Nascimento sofre de um falso dilema: o dilema da guerra em que ou resta ele ou
o outro.
Daí as
estratégias adotadas serem tão díspares: em Macunaíma, o que prevalece é a preguiça, o
deixar-se levar ainda que tenha alguns objetivos, como a recuperação do
muiraquitã. Estratégia presente no dandebenjaminiano, contrário ao ritmo do trabalho
moderno: a preguiça é a tradução perfeita de conquistar o seu próprio tempo:
fazer o máximo com o menor esforço possível. Deste modo, a preguiça é
anti-natural, pois há um trabalho para ser preguiçoso, para não se deixar
morrer – mas é também uma resistência ao trabalho moderno, que engole o homem
na poeira do tempo. Nascimento, por sua vez, tem em mente sempre umaestratégia, o
artifício diretamente oposto à preguiça, na medida em que também busca utilizar
minimamente recursos, mas, diferentemente desta, tem em vista os fins.
Explico-me: na preguiça, os meios são mais importantes do que os fins – aliás,
neste pragmatismo, ela é o fim de si mesma. De maneira oposta, embora com
naturezas próximas, a estratégia sempre busca um fim, não importa quais os
meios. Daí o tempo na estratégia é a rapidez, a eficiência. Neutralizar e
eliminar o inimigo o quanto antes. Para Nascimento, é necessário, sobretudo,
sobreviver; enquanto para Macunaíma, o importante é viver.
***
Por fim, uma
advertência. Este ensaio não é um elogio a um modelo heróico em detrimento de
outro. Apenas gostaria de, a partir da marca simbólica do herói – com todos os
problemas que existem num projeto nacionalizante como este – investigar algo da
ordem do imaginário coletivo que circula pelo sistema cultural. Sequer, é
possível dizer que Macunaíma seja o modelo nacional por excelência, dado que
junto a ele existem diversos ensaios sobre a identidade nacional que exploram
símbolos externos ao eixo particular de um país de proporções tão grandes.
Talvez, ainda esteja para ser feito um estudo sobre o imaginário coletivo que
não se fixe nos limites da formação da nação, como até hoje herdamos dos
pioneiros da República Velha. Digressões a parte, o objetivo deste ensaio é
antes trazer a tona a variação no modo de narrarmos a produção cultural e o
universo simbólico que se mobiliza através disso. Procuramos em Macunaíma e em Tropa
de Elite 1e 2 modelos que reflitam variações e limites. Modelos que se aproximam
enquanto procuram interpretar as mazelas nacionais, mas que se afastam nos
projetos estéticos e seus alcances. Algo que se desmistifica em uma última
observação sobre a natureza dos sujeitos-narradores.
Desde
sempre, Tropa
de Elite evidencia a voz de capitão Nascimento, que, entre
as suas dúvidas e as do próprio diretor Padilha, acaba tomando a tônica
discursiva. É ele quem investiga, julga, prende e mata. Para além do bem e do
mal, Nascimento é apenas fruto de uma sociedade corrompida – como indica o
início do filme quando afirma: "a sociedade o formou pra isso".
Apoiado em uma sociedade sem persona, o herói tem identificação direta com a Lei, ou com o modo como ele a
interpreta. Assim, Nascimento narra sua própria história: autor de si mesmo,
justifica suas atrocidades diante do sistema e da sociedade – algo que se
encerra na versão moralizante-espetacular da CPI. Macunaíma segue um caminho
diverso: alguém narra suas desventuras, configurando em si uma alteridade
enigmática que pretendemos desvendar no decorrer da leitura. Assim, a relação
entre o leitor e Macunaíma, não é imediata – há uma interferência –
inexistente, aliás, em Tropa
de Elite. Aos poucos, descobrimos quem é este narrador de Macunaíma: um papagaio, o último ser nativo com quem Macunaíma reserva suas
conversas.
Seria esta a
última peça que o herói sem caráter nos havia reservado. Jamais suspeitaríamos
que seria uma ave a responsável pela narrativa. Opção astuciosa, visto que o
papagaio seria aquele modelo natural mais próximo do campo simbólico da
linguagem, capaz de emitir palavras. Mário de Andrade estabelece aqui a
passagem dos dois universos presentes no impasse de sua obra: a natureza e a
civilização. E aqui temos um curto-circuito com o herói contemporâneo de Tropa de Elite. Se, por um lado, Macunaíma se utiliza do animal mimético para narrar sua
humanidade heróica à gente de seu povo, Nascimento, por outro, segue o caminho
inverso: exclui de si qualquer universo político que não seja o espetáculo e a
publicidade da tragédia da CPI, da verdade a ser confessada nos tribunais
parlamentares. Mas talvez, não esteja aí sua catarse – tudo se resolve quando
finalmente Nascimento mostra a que veio: derrubar o sistema no pau. Enquanto
Secretário, fica atado às amarras políticas, enquanto Capitão, ocupa o
território indeterminado da polícia – aquém e além da política. Tudo se resolve
quando Nascimento opta seguir pelo caminho inverso de Macunaíma: volta à
natureza, onde encontra a força e a brutalidade que o sistema lhe ensinou. Eis
aqui o verdadeiro Nascimento e o gozo de seu público! Resta pensar que entre a
animalização do discurso e a expressão discursiva da natureza, Macunaíma se
encontra com o Caveirão e, para não ser preso pelo sistema, ocupa agora a cadeia celeste,
observando de cima a brutalidade dos "heróis" nacionais.
Bibliografia:
ANDRADE,
Mário de. Macunaíma
– O herói sem nenhum caráter, São Paulo: Ed Martins Fontes,
s/d.
BOSI,
Alfredo. "Situação de Macunaíma" in Céu, Inferno – Ensaios de Crítica Literária e Ideologia, São Paulo: Ed. Ática.
CAMPOS,
Haroldo de. Morfologia
do Macunaíma, São Paulo: Perspectiva, 1973.
HOLLANDA,
Sérgio Buarque de. "O mito de Macunaíma" in O Espírito e a Letra (vol. 1), São Paulo: Cia. das Letras, 1996.
SOARES, Luiz
E. et alli. Elite
da Tropa, Ponto de Leitura, 2011.
___________________. Elite da Tropa 2, Ed. Nova Fronteira, 2010.
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