"Primeiramente
eu preciso desculpar-me pela falta de conhecimentos
específicos para criar uma análise que seja capaz de
refletir, sem reduzir, sua proposta visual em Medeia. Elogiar
apenas o traço é um sacrilégio. Eu gosto muita da forma como você
constrói as imagens, eu já via alguns de seus outros desenhos e a
beleza do seu não está só no Medeia...
A
primeira consideração a ser feita está na característica
da composição quadro a quadro: O RECORTE CINEMATOGRÁFICO.
Cada “quadrinho” traz os recursos técnicos da câmera e,
aqui, infelizmente eu não tenho um vocabulário técnico da
direção de fotografia que dê conta de explicar as elipses
cinematográficas de aproximação do zoom da câmera, aproximação ao
detalhe (aquela coisa do “plano americano”, “semi-perfil”,
“plano geral”, “close”, etc). Seus “quadrinhos” se
comportam assim, formam um plano sequência... E esse recurso é
admiravelmente belo.
O
segundo ponto está na sábia escolha em abolir as
convencionais caixas de texto. Peço desculpas por não ser
expert na linguagem HQ e, principalmente, pela minha
ignorância de não saber se existe, por exemplo, uma vanguarda
de quadrinistas que façam uso deste recurso. Mas foi a primeira
vez em que meus olhos se deparavam com essa falta de
“deixas”, com essa ausência de relação que a narrativa
construída através das palavras traz.
Aliás,
eu gostei tanto deste recurso, que só consigo pensar que
o “balãozinho” das HQ’s são uma forma de ultrajar as
competências de raciocínio do leitor... O texto na história em
quadrinho se torna, agora, um recurso extremamente pedagógico, um
facilitador, algo que reduz a obra e também o leitor. Um recurso
desnecessário.
E
essa relação que você constrói, Mari, exige boa vontade
do seu interlocutor. O cara tem que estar a fim de pensar. E de
pensar muito! Você abre uma porta em que o leitor ganha
certa autonomia em relação à narrativa. Não dar a história,
e as suas intenções enquanto autora, assim de bandeja, enriquece o
seu trabalho, te dá o tonos do gesto artístico e exalta a
capacidade de apreensão do seu leitor. (Aproxima sua obra
às questões duchampianas...).
E
abolindo o texto você dá às imagens o valor que elas
merecem ter! (E aqui, falando sério, você entra em sintonia
com muitas questões tenho lidado lá em H.A. Principalmente
em relação à briga com o Academicismo Ocidental, que desde
Platão, se faz racional, e recusa as imagens; que dá à imagem uma
condição de inferioridade quanto à palavra escrita). Sua opção de
não usar as palavras te faz transgressora também neste sentido.
Por
sermos ocidentais, aí a dificuldade (e recusa de alguns) para
construir e entender a narrativa composta por imagens. Porque
análise de imagens é sempre muito difícil... Vide o fato
de eu frequentar um curso superior e dedicar quatro anos
para aprender a fazer isso. Análise de imagens exige
repertório: o sujeito precisa acessar conhecimentos que estão
além das imagens.
E
você arma majestosamente uma cascata de significâncias! Para ler a
sua Medeia, Mari, é preciso a Medeia de Eurípedes (o mito
grego), conhecer algumas premissas da sociedade grega do séc.
V a.C., conhecer algumas diretrizes do gênero trágico,
conhecer algumas regras do decoro acadêmico (da construção da
imagem, do código gestual da história da arte), é preciso conhecer
a tropa de choque e as situações de reintegração de posse...
Não
ter lido a Medeia de Eurípedes me deixou “pelada na chuva” na
hora de me relacionar com a sua Medeia. O caso do mito da Medeia é
justamente a tragédia que eu comi pelas beiradas... Conheço o
enredo, li análises sobre a tragédia grega, nunca assisti
nenhuma montagem fidedigna, só vi, por exemplo, o Gota
d’Água do Chico Buarque... Não assiste quase nenhuma das
várias produções cinematográficas de (só vi a Medeia de Lars Von
Trier). E, felizmente, assisti aulas do Toscano sobre Medeia
(história do teatro/ELT).
Seu
trabalho nesta obra, explicitamente, se relaciona com a
montagem do Sáfaro.
Montagem que eu não vi.
Essa
enxurrada de coisas dificultava minha compreensão da
linearidade do discurso narrativo. Como percorrer os quadrinhos e
leva-los de encontro ao enredo do mito? Como reconhecer nos
desenhos a Medeia de dois mil e quinhentos anos atrás? Como
relacionar as informações seculares com as questões do
sujeito comum do séc. XXI?
Confesso
que vi e revi seus quadrinhos, trilhei inúmeras linhas, fui e voltei
e demorei muito para entender a segunda parte. Até a página com a
cena do nascimento dos filhos de Medeia e Jasão, a leitura ia
bem, depois disso eu me perdia entre “o quê?”, “onde?”,
“quando?” e “quem?”.Mas
isso ocorria pela minha falta de conhecimentos sobre o mito
grego. No dia seguinte ao primeiro
contato com a sua Medeia, consegui entender o final.
E neste lance
de dados, é fundamental e informação “Medeia e a
chegada do discurso do terrorismo no Brasil”. Sua HQ me
fez entender o quão brilhante foi a escolha, justamente, de
aproximação da Medeia com a questão do terrorismo.
A
relação não linear do tempo na narrativa torna o entendimento da
trama mais dificultado. E essa dificuldade é o que há de mais
bonito. Eu adorei os black-outs que você traz com as páginas
negras, que penso eu, se relacionam, possivelmente, com o
percurso narrativo que foi construído na peça do Sáfaro. A
página “pixelada”, que a princípio me dava a noção
de “vertigem”/ de “estado de transe” da Medeia (personagem),
e que só depois me apresentou uma mira (tipo atirador de elite), é
sensacional...
Gosto
muito da sobreposição de imagens que você compõe ao diagramar as
páginas (como ocorre na página do “bifão” com os
cortes de carne ou na página com os olhos angustiados das
figuras que levaram seu ancião para o “ritual de
rejuvenescimento”). Essa cascata de imagens obriga um divertido
exercício de Gestalt.
Sua
escolha de construção narrativa, que subverte a linearidade
temporal (começo/ meio/ fim) somada à forma cinematográfica
da sequência torna sua HQ altamente vertiginosa e plena de
soluções requintadas.
É
preciso estar a fim de fricção. Sua HQ traz uma
narrativa aberta. Sua Medeia é máquina desejante, ela dialoga com
Jean Baudrillard e a noção de contemporaneidade. Sua HQ é uma obra
de arte!"
Carta de Paloma Neves, 17/08/2014.